Função Paterna e Desenvolvimento Psicomotor – Autor: Maria Luisa Inguaggiato

Função Paterna e Desenvolvimento Psicomotor

Autor:

Maria Luisa InguaggiatoPsicomotricista.
Terapeuta Corporal de Investigação Psicossomática. Dançaterapeuta formada pela Roehampton University – UK.
Psicomotricista Titular da Sociedade Brasileira de Psicomotricidade. Fisioterapeuta.
Coordenadora do curso de especialização em Psicomotricidade pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Publica.
Integrante da equipe do Lugar - Centro de Estudos Interdisciplinares e Atendimento Clínico. Salvador-Bahia (Brasil).

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo proporcionar reflexões sobre a clínica de abordagem psicomotora para crianças, tendo como eixo teórico transdisciplinar a psicanálise e o favorecimento desta na escuta psicomotora. A partir deste eixo teórico levanta questionamentos do lugar do psicomotricista na relação transferencial. Evidenciam a importância da função paterna no desenvolvimento psicomotor e os aspectos subjetivos implicados nos transtornos psicomotores, devido a sua precária sustentação.

ABSTRACT:

This article is a reflection on the psychomotricity based therapy for children with psychoanalysis, and it is relevance in psychomotricity “hearing”, as it is transdisciplinar theoretical axis. From this viewpoint, it explores the role/place of the psychomotor development and the subjective aspects of the psychomotor imbalances by the lack of or precariousness of the paternal role.

INTRODUÇÃO

A prática clínica exercida pela equipe interdisciplinar da instituição LUGAR —Centro de Estudos Interdisciplinares e Atendimento Clínico, localizada em Salvador-Bahia (Brasil), vem, há algum tempo, proporcionando questionamentos, contribuindo para o aprofundamento da pratica clínica de abordagem psicomotora para crianças, sob o olhar da psicanálise. A experiência e as reflexões apontadas neste artigo são resultantes desta prática.

A psicanálise é o eixo teórico transdisciplinar que perpassa todas as áreas de atuação da LUGAR, já que esta instituição, ocupa-se de uma prática que atua na perspectiva da constituição do sujeito e toma a relação transferencial como ponto norteador no tratamento, abrindo espaço para que o sujeito ocupe um lugar de saber sobre si mesmo. Sendo assim a prática interdisciplinar é fundamental para o entendimento das questões que serão aqui apresentadas, pois a troca entre as áreas possibilita maior compreensão dos aspectos envolvidos na construção da subjetividade. Esta visão permite a psicomotricidade considerar o sujeito não apenas em seu corpo esquemático como também, na sua função imaginária, sustentada pelo plano simbólico.

O que proponho neste artigo é estabelecer conexões deste eixo teórico com a prática psicomotora, considerando-o como um relevante instrumento sustentador da escuta psicomotora, capaz de apontar ao psicomotricista, a posição e o lugar na relação transferencial. Para tanto, proponho um recorte de alguns conceitos da teoria psicanalítica, que serão apresentados no decorrer do texto, para entender o tema da função paterna e sua operação estruturante no desenvolvimento psicomotor, pois a prática clínica tem mostrado que muitos dos transtornos psicomotores estão diretamente relacionados com esta temática. O Objetivo deste artigo não é aprofundar tais aspectos, mas apenas colocá-los de forma que possam dar uma melhor compreensão para a temática abordada no âmbito da pratica clinica psicomotora. Para aqueles que se interessam pelo tema, podem buscar aprofundamentos nos estudos psicanalíticos lacanianos.

A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO CORPO: REFLEXÕES A PARTIR DO EIXO PSICANALÍTICO

As primeiras questões a serem colocadas e que serão desenvolvidas no decorrer do texto são: os aspectos da constituição do sujeito envolvidos no transtorno psicomotor e a posição do psicomotricista a ser ocupada na relação transferencial para a direção da cura.

Muito se tem escrito sobre a relação especular constitutiva do sujeito e suas representações na estruturação da imagem corporal da criança, sendo assim, para pensar o lugar do imaginário na estrutura simbólica, é necessário refletir, não só sobre esta primeira experiência subjetiva, mas também sobre a função paterna operante na construção imaginária, principalmente porque esta dinâmica interfere no desenvolvimento do esquema corporal e das aquisições práxicas motoras.

Lacan coloca que: “o desenvolvimento só ocorre na medida em que o sujeito se integra ao sistema simbólico, aí se exercita, aí se afirma pelo exercício de uma palavra verdadeira” (Lacan, 1986, 104). Este exercício simbólico é sustentado pela instância paterna. É pela palavra que o corpo cria entorno, contorno, borda, forma e movimento. Podemos dimensionar desta forma, o corpo estruturado pela linguagem. O entendimento do sintoma e seu papel estruturante, colocando-o ainda, como “mediador do imaginário ao simbólico” (Corrêa, 2001, 70). Corrêa nos faz pensar nos transtornos psicomotores, quando manifestados como sintomas clínicos. Estes se estabelecem para dizer de algo que justamente não está em “falta” na constituição do sujeito, por isto apontam a posição da criança diante da castração, revelando o funcionamento psíquico na operação paterna.

Para a Psicomotricidade, isto é importante, pois as manifestações sintomáticas psicomotoras muitas vezes, são representativas justamente deste momento psíquico do sujeito, portanto quando há uma desorganização psíquica, consequentemente pode haver uma desorganização tônico-motora, evidenciando a interferência dos aspectos estruturais nos instrumentais.

Levando estes aspectos em consideração, para esta abordagem psicomotora, não há como trabalhar o corpo e não considerá-lo a um só tempo, numa dimensão real, simbólica e imaginária.

A função paterna é a que “estrutura nosso ordenamento psíquico na qualidade de sujeitos” (Dor, 1989, 14). Permite que os significantes oscilem no plano imaginário, permeiem a borda do real, criando cadeias representativas, sustentados pelo eixo simbólico do sujeito.

No jogo psicomotor, isto se evidencia quando os significantes se inscrevem no corpo, se corporificam através do movimento, ganham uma carga tônica, definem um projeto motor e através da linguagem, criam uma representação gestual do sujeito. Através do jogo a criança coloca em cena seu imaginário, fala do seu ordenamento psíquico, busca seu eixo simbólico.

Para que o plano simbólico venha a fazer sustentação, é necessário que em determinado momento da estruturação imaginária, constitutiva da imagem corporal, a relação com o Outro, se estabeleça estando este, em uma posição de Outro barrado, pois é preciso que algo “falte”, no lugar onde o sujeito poderá emergir, que o objeto (a) caia e a cadeia de significantes do sujeito se inscreva e o represente a partir daí.

Retomando alguns conceitos do tema do Estádio do Espelho, e para compreendermos o tempo do real, faz-se necessário introduzir algumas idéias formuladas a partir do objeto(a). Há sempre algo que não é especularizável no tempo imaginário, este algo é o objeto (a), aquilo que vai ser constitutivo do nosso eu, do nosso eu ideal, aquilo que, por ser resto não especularizável, fará o sujeito se inscrever na cadeia de significantes e buscar novas potencialidades.

É exatamente por existir este objeto que não é especularizável no desejo do Outro, que surge o espaço vazio, no qual sempre nos remeterá a uma repetição circular ao redor deste objeto (a), o que permite margear o real, numa produção imaginária e simbólica, remetendo o sujeito a um lugar de “falta”. Portanto o objeto (a) está no lugar da falta. Isto permite a criança se reconhecer no olhar do Outro, de forma não alienada, porque há algo que não pode ser espelhado, algo que não responde o desejo no Outro, mas situa a criança em relação à falta necessária para se constituir no lugar do Outro.

Lacan coloca que enquanto o sujeito acomoda seu desejo em presença do Outro, “produz no plano imaginário uma oscilação do espelho que permite, as coisas imaginárias e reais, que não tem o hábito de coexistir para o sujeito, reencontrar-se numa certa simultaneidade, ou em certos contrastes” (Lacan, 1986, 202).

Em relação a Psicomotricidade, esta dinâmica constitutiva do sujeito permite a criança se reconhecer; mesmo que ainda em alguns momentos “assujeitada” ao Outro; e buscar outras produções corporais, criando metáforas significativas dos gestos que o representem, e não sós aqueles que o inscreveram enquanto imagem alienada ao Outro primordial. O que permite a criança se movimentar diante desta imagem de assujeitamento é a instância paterna. Podemos entender, portanto, o objeto (a), em uma de suas funções, como elemento importante na relação especular e que introduz a dimensão do nome do pai, já que o acesso do sujeito ao simbólico depende da posição, da forma como o “nome do pai opera no desejo materno, do valor que este confere a lei do pai enquanto lei do desejo” (Dor, 1989, 56) portanto, a posição da mãe diante da castração.

A função paterna opera para que o significante S1, marcado pela perda do Objeto (a), faça o desdobramento necessário da cadeia de significantes, e é esta que vem dar consistência ao imaginário do corpo. Estas considerações introduzem a relação com o Outro barrado, importante para que a criança não fique alienada a construção imaginária de seu corpo na relação com o Outro primordial, embora este momento de alienação seja fundamental na construção da subjetividade. Para que a apropriação do corpo e o desenvolvimento do esquema corporal tenha maior propriedade, é necessário a separação, ou seja, a introdução de um terceiro elemento na díade mãe/criança e que a criança não permaneça no lugar de único objeto que pode satisfazer o desejo da mãe. Portanto, para que o Outro esteja posicionado como Outro Barrado é necessário, que esta relação mãe/criança seja marcada pela existência imaginária de um objeto capaz de preencher a mãe: o falo (Dor,1985) no qual a criança passa a se identificar.

Então, “a função paterna só poderá ter um caráter operatório na medida em que o pai se acha investido da atribuição fálica” (Dor, 1989, 47). O que permitirá a criança à mediação do plano imaginário para o simbólico, reconsiderando sua identificação fálica, é justamente este elemento fálico, introduzido pelo discurso materno, assegurando a função paterna, dando a criança o reconhecimento do seu lugar na dinâmica constitutiva do sujeito.

Portanto é pelo reconhecimento da criança no Outro no plano imaginário, e a sustentação dos cortes estruturantes da subjetividade, com a entrada do tempo simbólico, que a criança, espelhada em um ideal escolhido no Outro, regula sua imagem. Poderíamos finalizar estas primeiras reflexões, utilizando as colocações de Geselda Baratto, no texto da estruturação da imagem do corpo pela instância do olhar: “o sujeito não está no corpo, não está na imagem real, mas nos significantes que o representam em termos simbólicos. A imagem, tendo seu suporte no significante, lança o sujeito numa relação transferencial ao Outro” (Baratto, 2000, 54)

A FUNÇÃO PATERNA OPERANDO NA RELAÇÃO TRANSFERENCIAL PSICOMOTORA: SUSTENÇÃO E REPRESENTAÇÃO

Para contextualizar os pontos teóricos apresentados, buscarei referências na prática, relatando alguns fragmentos clínicos, os quais me proporcionaram tais reflexões. Dos vários casos que trabalhei me chamou a atenção, uma criança que apresentava como manifestação sintomática, uma imperícia na ação. No discurso parental a criança era falada como aquela que sempre derrubava objetos com facilidade, inquieta, aquela que não apresentava domínio do corpo no espaço, pois estava sempre se batendo com os colegas da escola.

No discurso parental, esta criança estava inscrita como estabanada, fazendo referências a isto como sendo algo já constitutivo de sua família: “Na família é assim, eu tenho um irmão e um primo que são assim até hoje”. A criança era ainda referendada no lugar de quem não gostava de fazer esportes, não gostava de brincar com as outras crianças, não gostava de “coisas que usassem o corpo”.

A partir desta demanda parental podemos levantar alguns questionamentos: qual é a relação desta criança com seu corpo e como o dimensiona no espaço? Ou ainda: como é permitida a apropriação de seu corpo? No discurso parental, qual é efetivamente, o “espaço” da sua experimentação subjetiva? Como é olhada? Por que não pode sustentar o eixo do corpo diante do olhar dos pais?

No início do trabalho, a posição demandada da criança era de exercer o controle sobre meu corpo – “você pode falar e olhar, mas não pode se mexer, só quando eu mandar”. Dizia que seu corpo era feito de “vento, que nada poderia atingi-lo”. Utilizava materiais como cordas e panos para simbolizar o “amarrar” e o “prender”.

Estas palavras estavam sempre presentes no seu discurso e com elas, todo o seu projeto motor sustentado por uma carga tônica desajustada. Por que será que estas palavras o representavam naquele momento? Dizia: “vou roubar os seus poderes de corpo, sua rapidez, sua força, sua agilidade, tenho o controle sobre você”. Brincava com isso, mandando andar em diversas direções no espaço. Quando a interrogo porque quer roubar meus poderes de corpo, explica que precisa deles para que seu corpo não “desmanche”. Chamava-me a atenção neste brincar, o fato de sempre colocar no início de cada frase, a palavra “finge”. A leitura deste momento clínico, me permite pensar sobre dois pontos: o que ainda ele não pode ser, pois precisa fingir que é e quais os pontos que estão “amarrados” à sua imagem corporal.

Esta leitura permite situar o lugar da relação transferencial em que a criança está ancorada, e constatar; pelas tentativas de mudança da posição ocupada na relação transferencial neste inicio do trabalho, através de situações que o confrontassem; que algo parecia insustentável para ela naquele momento. As tentativas de mudança de posição, o levavam a se colocar na relação de forma mais fusional, o que me permitia fazer uma leitura da forte presença ainda do momento de alienação e a análise de que a criança ainda necessitava desta repetição como uma forma de elaboração. A necessita de jogar nesta posição, a demanda de ter os meus “poderes de corpo”, exercer o controle sobre eles é significativa e representativa da relação com o Outro. Parece que sua experimentação corporal está “amarrada”, como se algo o impedisse na apropriação de suas conquistas corporais. Ou será que elas só poderiam aparecer ao “olhar do Outro”, no momento em que este, corporificado na relação com o psicomotricista, se mantivesse “preso”?

Pelas entrevistas com os pais, na escuta de seus discursos, fica claro o lugar em que estão posicionados, onde o olhar materno exerce o controle na relação com o filho e o pai não exerce a operação de corte, para o avanço das suas conquistas corporais, ou melhor, da apropriação de sua imagem corporal, da não alienação ao Outro, do desenvolvimento do seu esquema corporal. No discurso materno não há espaço para o nome do pai.

Através do discurso materno, identifico que não é permitido à criança fazer várias coisas com seu corpo, porque “pode se machucar”, “ficar doente”. É importante destacar, que esta criança apresentou, nos primeiros anos de vida, vários episódios que comprometeram sua saúde. Poderíamos pensar a partir disto, como se inscreveu sua experiência subjetiva no estádio do espelho e como esta vem se desenvolvendo sem a operação paterna consistente.

Este momento nos remete a pensar, como a criança está posicionada na identificação fálica, que lugar ocupa na sua estruturação edípica e as relações das dimensões simbólica e imaginária do pai, e o pai da realidade. Joel Dor coloca: “Nenhum pai, na realidade, é detentor e fundador da função simbólica que representa. Ele é o seu ”vetor”(Dor, 1989, pg47). O que me faz supor, neste caso, que o pai desta criança não sustenta esta vetorização para fazer valer sua função simbólica, ou seja, não tem consistência no discurso materno, não operando o corte na construção imaginária desta mãe em relação à apropriação corporal de seu filho. Neste caso, a fragilidade do pai simbólico, ou seja, a inconsistência de sua função, não se deve a carência do pai real, mas sim, do desinvestimento da sua atribuição fálica.

No processo do tratamento, tanto é importante saber da posição transferencial demandada pela criança, como buscar deslocamentos da mesma para a direção da cura. É importante que se decodifique, analise o jogo espontâneo da criança, em um registro simbólico, ou seja, que se escute os significantes inscritos no corpo pela linguagem e como a criança por sua vez, recebe isto como verdade.

Para a direção da cura, o psicomotricista não pode ficar capturado em imagens especulares, mas sim abrir espaços vazios para que o eixo simbólico encontre resignificação no plano imaginário do sujeito e através do jogo psicomotor a criança possa produzir corporalmente outros significantes representativos. O psicomotricista deve permitir que a função simbólica do pai se sustente, para que a criança possa identificar e reconhecer a condição de castração do Outro, possibilitando, assim, uma interpelação, do Outro primordial, e consequentemente um deslocamento do falo. Para tanto o profissional deve reconhecer-se no lugar do Outro Barrado.

Joel Dor coloca que quando há este deslocamento, “a criança entra, a partir daí, num momento de incerteza que antes tinha dele diante do desejo de sua mãe. Só esta incerteza permite compreender como a criança começa a se confrontar com o registro da castração pela instância paterna”(Dor,1989, 47).

Em determinada sessão, depois de muitas repetições “amarradas”, abriu-se um espaço, onde constato uma dinâmica mais presente na instância paterna, através das construções imaginárias corporificadas no jogo. Este reposicionamento representou para a criança o “desprendimento” e a liberação para experimentar outros esquemas de ação, explorando sua relação com o espaço, com seu próprio eixo corporal, seguido de outras produções corporais, nas quais se julgava “preso” para fazê-las. A psicomotricidade favorece exatamente o domínio imaginário do corpo, desde o seu lugar no mundo simbólico, ou seja, desde o mundo das palavras, pois, como já foi citado anteriormente, o corpo é estruturado pela linguagem.

A partir desta mudança de posição, abriram-se novos caminhos para que meu pequeno paciente pudesse avançar nas suas pesquisas e conquistas corporais, principalmente no que diz respeito ao seu eixo corporal, o que, num primeiro momento, no discurso parental ele não sustentava. Algo operou no plano imaginário e simbólico, no sentido de que não mais se referenciava num olhar alienado no Outro, mas num olhar barrado do Outro.

A partir deste olhar do Outro barrado, corporificado na relação transferencial com o psicomotricista, houve a possibilidade de que seu desenvolvimento psicomotor se “desaprisionasse”. Através da repetição a criança pode descobrir outros significantes corporais representativos da sua imagem. Para que o Outro se encontre numa relação de Outro barrado, como já foi colocado anteriormente, é necessário que o sujeito deseje, segundo a articulação significante, ou seja, que a criança se reconheça posicionada diante da castração. Para que isso se efetue na relação transferencial é preciso que o psicomotricista se reconheça também na posição de castrado, o que lhe permite não ter um saber absoluto sobre a criança, possibilitando a ela o desdobramento necessário para que sua manifestação sintomática tome outro sentido.

A função Paterna só se torna operante se o Nome do Pai encontra um espaço no discurso materno. Isso significará para a criança poder apropriar de suas conquistas corporais e criar representações próprias para suas atitudes e seu desenvolvimento psicomotor, permitindo-lhe uma atribuição fálica. Esteban Levin coloca no artigo - O gesto e o Outro: o visível e o invisível, “O fato da espera, da pausa, do suspenso para ver o que faz, o que diz a criança, dá a possibilidade para que ela realize deslizamentos, substituições por si mesma, já que a situação transferencial a sustenta.” (Levin, 1990, 73)

Outros fragmentos clínicos podem ilustrar estes deslizamentos. Certo dia, constrói um jogo que nomeia como “escorregão na casca de banana”, e segue espalhando pela sala vários pedaços de panos e almofadas, propondo uma brincadeira com o eixo de seu corpo, controlando-o para que não escorreguesse. Ao final do trajeto de seu projeto motor, se atirava nas almofadas dando cambalhotas e pulos. Começa a trazer outros significantes de seu corpo a partir da atividade motora do “pular” e repete este jogo, várias vezes, criando diversas formas de exploração do controle do eixo do próprio corpo, explorando diferentes formas de “pular”nas almofadas, pequenas e longas distâncias. A Palavra pular está em aspas, para ressaltar que esta palavra passa a ser um significante forte nos seus movimentos. Neste momento da relação transferencial, sua demanda é de que apenas olhe o jogo, verificando-se deste modo, uma mudança de posição.

A experimentação desta outra posição lhe permitiu desdobrar várias outras criações corporais que envolviam a nova exploração de seu eixo corporal, ou seja, ordenar sua posição postural em relação ao equilíbrio, redimensionando-a no tempo e no espaço.

Outro fragmento clínico interessante a partir de suas produções corporais, foi a criação de um jogo com caixotes e tábuas de madeira, nomeando-os de “pontes”, dizendo que, na fazenda de seu pai, havia muitas pontes. Brincava de atravessá-las de diversas formas, colocando um pé na frente do outro, e diz “Isto é bastante perigoso, mas eu posso”. Aqui, há um pedido de sustentação desta atribuição fálica, através do olhar de reconhecimento do que é capaz, o que só foi significativa por estar dimensionada na relação transferencial.

A sustentação desta posição vai permitindo, cada vez mais, a exploração imaginária de seu corpo, sustentada na sua estrutura simbólico, pois passa a criar, a cada sessão uma nova possibilidade de experimentação do eixo corporal e também uma possibilidade de questionar-se sobre as coisas que são ditas a seu respeito. Isso me faz pensar que há realmente um redimensionamento da atribuição fálica, observado nas suas atitudes corporais. Situa seu corpo na linguagem como “Eu tenho equilíbrio!!!” Passa a partir daí, várias sessões jogando de equilibrista, realizando vários números “bastante perigosos”.

Joel Dor coloca: “que podemos facilmente compreender a colocação da metáfora paterna a partir do principio desta substituição significante, na qual um significante novo virá tomar o lugar do significante originário do desejo da mãe” (Dor, 1989, 51) O pai é uma metáfora. A introdução do quarto elemento, o falo, na estruturação edípica, permite a criança avançar nas conquistas de seu corpo e construa uma cadeia de significantes outros que não aqueles apenas inseridos pelo desejo materno.

Numa determinada sessão, pergunta-me: “Tem alguma coisa que eu estou fazendo que você não está gostando? Aqui há uma pergunta que se remete ao Outro, porém, é sob a forma de pergunta, é como se, agora, interrogasse a condição de “aprisionado”. Determinada vez, ao jogar-se nas almofadas, bate a bunda na parede: e dá risadas: “Até parece que é minha mãe!” Aqui aparece uma forma diferente, uma indagação, ou melhor, uma outra forma de “brincar com este Outro”. Neste momento, poderíamos pensar no limite ético de cada trabalho e no exercício interdisciplinar, levantando a hipótese se haveria aí, talvez um pedido de espaço para a introdução de uma escuta analítica.

O ESPAÇO PSICOMOTOR NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

O lugar do psicomotricista, na transferência, é importante para possibilitar à criança uma produção corporal própria e abrir campo para o desenvolvimento do seu estilo motor e de suas possibilidades de domínio do eixo corporal. Para que este lugar se estabeleça é necessário que o próprio psicomotricista se coloque no lugar do Outro barrado, ou seja não ocupe o lugar vazio, um saber sobre a criança, trazendo técnicas e exercícios tônicos-motores, deixando à criança a possibilidade de estar em falta para que ela possa produzir avanços na construção da sua imagem corporal, não alienada ao Outro primordial. Para tanto, é necessária, como já vimos, que a operação de corte se estabeleça.

A Transferência na Terapia Psicomotora se instala quando há um Outro neste lugar, onde o sujeito faz apelo. A corporificação imaginária, onde o psicomotricista disponibiliza seu corpo, permite que entrem em cena os significantes gestuais que o representam. O Outro, corporificado no corpo do psicomotricista, possibilita o desdobramento do sintoma psicomotor, possibilitando à criança outras formas de reconhecimento de sua imagem, outras significações de seus gestos, atitudes, encontrando sua cadeia de significantes gestuais que o representem na sua atitude e postura corporal.

Portanto, o “Outro vai se tornar mais especificamente o lugar, onde se constitui o eu que fala”(Kaufmann, 1996, 385) ou seja o Outro será demarcado pelo campo da linguagem que nos estrutura em uma determinada posição. O eu que fala de seu corpo, não alienado, mas com suas possibilidades. Então, pode falar de seu corpo, não como alguém que é “estabanado”, que apresenta uma imperícia na ação, mas com outras marcas significantes.

A busca de reconhecimento de uma outra posição diante da imagem corporal é que movimenta o espaço e o desdobramento do jogo, é o que possibilita o desdobramento de esquema corporal. Possibilitar que a função paterna se torne operante é o que justifica o trabalho. O Terapeuta tem como papel buscar instrumentos para a sustentação desta operação, tanto na relação transferencial como nas intervenções junto aos pais, sustentando um reposicionamento da posição subjetiva da criança, favorecendo a ela o encontro de seu LUGAR enquanto sujeito do desejo.

BIBLIOGRAFIA:

Baratto,G. (2000). Da estruturação da imagem do corpo pela instância do olhar. Em Kupfer, M.C. Tratamento e escolarização de crianças com distúrbios globais de desenvolvimento. Pgs 46-62. Salvador. Ágalma.

Corrêa, I. (2001). A Psicanálise e seus paradoxos-seminários clínicos. Salvador. Agálma

Dor, J. (1985). O estádio do espelho e o Édipo. Em Dor, J. Introdução à leitura de Lacan- O insconsciente estruturado como linguagem. 77-88. Porto Alegre. Artes Médicas.

Dor, J.(1992) O esquema ótico e os ideias da pessoa. Eu ideal e ideal de eu. Em Dor, J. Introdução a leitura de Lacan- Estrutura do sujeito. 31-51. Porto Alegre. Artes Médicas.

Dor, J.(1989) O Pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise- o legado de Freud e Lacan. 385-387. Rio de janeiro. Jorge Zahar Editor.

Lacan, J. (1986). A Tópica do imaginário. Em Lacan, J. O Seminário: Livro 1: Os escritos técnicos de Freud,1953-1954. 89-106. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

Levin, E. (1990). O Gesto e o Outro: o visível e o invisível. Em Centro Ligia Coriat. Escritos da criança n3. 68-81. Porto Alegre. Palavra Prima.

Artigo publicado originalmente pela autora na Revista Iberoamericana de Psicomotricidad y Técnicas Corporales em novembro de 2001. http://iberopsicomotricidadum.com/

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