A Formação do Psicomotricista

A Formação do psicomtricista
Françoise Desobeau

A Sociedade Brasileira de Terapia Psicomotora é afiliada à Sociedade Internacional de Terapia Psicomotora cuja sede é em Bruxelas. O objetivo primordial desta sociedade, registrado em seus estatutos é promover o estudo e a pesquisa em Psicomotricidade. Como sua atual presidente, eu gostaria de prestar homenagem e de agradecer aos organizadores deste 2o Congresso, assim como aos organizadores do 1o Congresso, no Rio, em 1982, pela energia e seriedade com que se dedicam à promoção da Psicomotricidade aqui e em outros lugares. Existe um elo entre o congresso do Rio e este de Belo Horizonte, que põe em relevo a busca de vocês e a sua evolução e a coragem que vocês apresentam, generosamente, para que seja reconhecida no Brasil a intervenção psicomotora nas suas três dimensões: educativa, reeducativa e terapêutica.
Atualmente no Brasil vocês estão numa situação um pouco semelhante àquela que nós conhecemos na França, antes de 1975, data na qual foi criada oficialmente a formação universitária dos psicomotricistas, que confere, ao final de três anos de estudo, o diploma superior em Psicomotricidade.
Antes de 1975, eram praticadas na França várias técnicas psicomotoras, por professores, professores de educação física e de dança, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos e médicos. A prática deles firmou a necessidade do subsídio da Psicomotricidade, tanto no campo da educação como no campo da saúde mental.
Nós quisemos que existisse em toda sua especificidade a profissão de psicomotricista, nos empenhando primordialmente em dois níveis:
1. o estabelecimento de uma formação oficial nesta disciplina a fim de que não existissem mais as formações a varejo que só poderiam ser fragmentárias.
2. O desenvolvimento dos conceitos e técnicas específicas da psicomotricidade a fim de consolidar seu lugar no quadro das abordagens pluridisciplinares, reeducativas e terapêuticas, tais como a fisioterapia, a fonoaudiologia, as psicoterapias verbais e analíticas.
Eu quero dizer que assim, ao invés de ser um instrumento de trabalho a serviço de uns e outros, uma técnica que se acrescenta a outras técnicas, a Psicomotricidade torna-se uma disciplina integral, exercida por especialistas diplomados, que são os psicomotricistas.
E, ao mesmo tempo, a Psicomotricidade esclarece e enriquece as outras abordagens. Do mesmo modo, o psicomotricista empenhado em sua prática se esclarece a respeito dos conceitos de outras disciplinas, tais como a educação, a psicologia, a fonoaudiologia, a psicanálise e estas disciplinas se benefeciam atualmente dos subsídios da abordagem psicomotora.
Os congressos permitem, com certeza, do mesmo modo que os cursos, seminários, textos, divulgar nossos trabalhos e sensibilizar outros técnicos para nossa abordagem.
Mas venhamos mais diretamente ao temo que me foi solicitado: qual deveria ser a formação do psicomotricista?
Eis que nossa atenção não está mais voltada para as técnicas ou os clientes, crianças e adultos, que se beneficiam delas, mas para a pessoa do psicomotricista.
O que ele deve saber e o que deve ser?
No que se refere aos conhecimentos que nos parecem necessários para a formação, vou me reportar ao currículo dos cursos de Psicomotricidade das universidades e escolas francesas, tal como nós os estabelecemos em 1975.
Participaram, então, da elaboração deste programa de formação, professores da Faculdade de Medicina, Psiquiatras, Médicos, Psicólogos e Psicomotricistas, assim como os representantes dos Ministérios da Saúde e da Educação Nacional, no nível das Universidades.
Foi decidido, então, que não seria incluída no nível universitário a formação dada aos professores especializados da educação nacional que trabalham no âmbito educativo das escolas maternais e primárias.
Nós ficamos subordinados ao Ministério da Saúde e trabalhamos durante meses e decidimos organizar a formação em três níveis:
1. o ensino teórico;
2. o ensino e a prática das técnicas físicas e psicomotoras;
3. a formação pessoal do estudante, o que supunha uma reflexão sobre a dimensão do engajamento do psicomotricista.
O ensino teórico previsto no 1o ano é o seguinte:

• Um curso de introdução geral que situa a psicomotricidade no âmbito profissional da Saúde, por exemplo, as questões de ética, as relações com as outras profissões, a equipe médica e paramédica, a patologia e os exames clínicos em medicina e cirurgia.
• Diversos cursos:
1. Anatomia geral e descritiva e neuro-anatomia;

2. fisiologia, bioquímica, biologia celular, fisiologia nervosa e muscular, a postura, sua integração, o movimento e seus níveis de integração.( Queiram me perdoar esta enumeração mas ela é necessária como base de reflexão a respeito dos pressupostos de nossa prática. )

3. A Psicologia:
- os sistemas de referência
- as condutas fundamentais e suas perturbações
- os elementos de psicometria
- a personalidade e sua evolução
- as comunicações não-verbais e sua patologia.

4. A Pedagogia:
- histórico
- métodos
- a personalidade do educador
- as estruturas de atendimento na escola maternal, nas classes primárias e secundárias
- a educação especializada, seus problemas, suas pesquisas.

5. Introdução à Psiquiatria Infantil:
- a criança
- seu crescimento, seu desenvolvimento.

6. A Psicomotricidade:
- definição
- histórico
- conceitos
- os exames psicomotores
- as técnicas
- a organização psicomotora e o exercício psicomotor
- a vida emocional
- as técnicas de ginástica, esportivas, de dança
- as bases neuro e psico-fisiológicas do ritmo.

No 2o ano, o ensinos destas seis disciplinas fundamentais continua, e é orientado para a patologia.
No 2o e 3o ano, os estudantes recebem uma formação teórica e prática sobre as técnicas fundamentais da Psicomotricidade e são iniciados estágios com recém-nascidos, crianças, adolescentes, adultos, pessoas idosas, tanto em Psiquiatria como em Neurologia ou com deficientes físicos, sensoriais ou mentais.
Eles recebem uma formação em vivência dentro dos diferentes métodos de relaxamento, de ginástica leve e das terapêuticas expressivas - mímica, máscara, dança, ritmo, música, pintura - e de terapias mediadoras - água, cavalo, esporte.
Também há formação em Terapias Psicomotoras propriamente ditas - o jogo, a atividade espontânea da criança, o corpo a corpo - e em terapias corporais emocionais - Gestalt, grupos de encontro, Bioenergética, sonho acordado.
São também, estudadas e vivenciados o atendimento individual, as técnicas de grupo, as técnicas de entrevista, as relações terapeuta/pais, as terapias familiares.
No 3o ano, o estudante inicia um estágio dentro de uma instituição com um psicomotricista, em cujo estágio ele é solicitado a praticar a psicomotricidade, num encontro direto com os pacientes.
Enfim, o 3o eixo desta formação é a formação pessoal do estudante, a fim de fazê-lo sentir sua própria vivência corporal e de iniciá-lo no diálogo corporal. O estudante irá praticar para si mesmo o relaxamento, um esporte ou luta, uma técnica expressiva. Ele via multiplicar as diferentes vivências.
Esta revisão rápida e incompleta nos dá uma visão da complexidade desta formação. Nós estamos ne encruzilhada de teorias e de técnicas derivadas de outras disciplinas e somos chamados a viver com os pacientes um engajamento corporal autêntico.
Isto é difícil e é por isso que, munido de seu diploma superior, o jovem psicomotricista que começa a trabalhar sente-se bastante despreparado. Ele só tem uma idéias em mente, adquirir uma formação complementar, da mesma forma que o psicomotricista mais experimentado procura uma reciclagem, pois sua prática e sua participação nas equipes multidisciplinares o questiona em todos os níveis de sua pessoa.
Nós pertencemos a uma profissão onde a formação deve ser contínua e na qual, pouco a pouco, dependendo da área em que trabalhamos, é necessária uma formação mais especializada.
Os meios de se obter esta formação contínua nos são dados por sessões, seminários e estágios que se realizam na universidade e nas instituições públicas e privadas.
Freqüentemente, esta formação é reconhecida e custeada por organizações institucionais. Trata-se de cursos e de estágios, de aulas teóricas e práticas.
Entretanto, esta formação a nível dos conhecimentos e das vivências é suficiente para o reeducador, mas não basta para o terapeuta. Há uma diferença fundamental no nível das técnicas empregadas e no nível da relação e do vínculo.
Na sua prática, o terapeuta é confrontado consigo mesmo. Como compreender o que é colocado em jogo neste encontro privilegiado e como dar sentido a todas essas tentativas de comunicação?
Certamente é necessário um espaço para a reflexão a respeito dos mecanismos observáveis colocados em jogo neste diálogo corporal : supervisão, grupos Ballint. Mas também é importante que nós mesmos tenhamos vivido os mecanismos de nosso próprio inconsciente, numa terapia pessoal: seja terapia de mediação corporal, seja em psicanálise.
Sem esta vinculação pessoal, a atividade espontânea da criança, o movimento profundo do adulto, não encontram sentido.
Podemos falar de reeducação psicomotora na medida em que o psicomotricista permite ao indivíduo se organizar e estabelecer representações simbólicas que permitem as aprendizagens e a atividade mental.
Nós podemos falar de terapia de mediação corporal, quando o terapeuta consegue receber e dar sentido ao que é vivido pelo sujeito.
A psicomotricidade se situa nas raízes da organização e da estruturação da personalidade. Se nós nos valemos da psicomotricidade do sujeito com mediação na sua terapia, nós encontramos então os caminhos, os traços das primeiras organizações, dos primeiros prazeres, carências e sofrimentos. Tanto o movimento como o sentir modificam as trocas tônico-afetivas e permitem estados regressivos importantes, fonte do ressurgimento do inconsciente e das vivências difíceis ( “mal vécu” ).
É no espaço relacional entre o terapeuta e o sujeito, que passa a fazer sentido o que é expresso, sendo que este sentido libera o sujeito de seus conflitos inconscientes ou de seus bloqueios tônico-afetivos.
Neste espaço ocorre um encontro entre os fenômenos inconscientes tanto de um como do outro: o psicomotricista não pode compreender nada se ele mesmo não é livre.
A interpretação simbólica não é o mais importante em sua terapia. Mas a compreensão simbólica é necessária.
Na Terapia Psicomotora, o espaço relacional estabelecido no diálogo corporal é muito importante. Nós devemos assegurar no decorrer da terapia a continuidade e a integridade do sujeito, permitindo as ligações e as associações entre o vivido aqui e agora, e o vivido de meses atrás, tudo isso orientado para o vivido passado. Esta relação de vivência corporal é essencial para a terapia psicomotora. É ela que vai permitir ao sujeito, que freqüentemente não consegue exprimir simbolicamente sua vida fantasística, reviver e recolocar em jogo, as situações dolorosas e conflitivas.
Como pode a formação preparar o psicomotricista para este trabalho?

Conferência no II Congresso Brasileiro de Psicomotricidade, da ABP, BH, 1982.