A Clínica de Psicomotricidade Relacional na Infância – Autor: Ana Elizabeth Luz Guerra

AUTOR:

Ana Elizabeth Luz GuerraAna Elizabeth Luz Guerra
Mestre em Psicomotricidade Relacional - UE/PT e CIAR/BR
Pós-Graduação e Formação em Psicomotricidade Relacional - CIAR
Psicóloga - UTP
Engenheira Química - UNICAP
Formadora de Psicomotristas Relacionais

<   

A Clínica de Psicomotricidade Relacional na Infância - a criança autista: de objeto a sujeito

Ana Elizabeth Luz Guerra

Este trabalho pretende realizar uma reflexão sobre a clínica de Psicomotricidade Relacional abordando o caso uma criança de 2 anos que, ao vivenciar uma experiência dolorosa de separação, passou a apresentar sinais clínicos de autismo. Uma vez o psiquismo se forma por meio dos vínculos que criança estabelece com as pessoas com quem se relaciona, ao manifestar impasses na constituição psíquica, focou-se o atendimento na busca de estabelecer relações primárias que pudessem reparar simbolicamente algo que se rompeu. Ao longo dos atendimentos o que se percebeu foi que a criança se mostrou capaz de fazer a travessia de uma margem a outra de si mesmo, ou seja, de objeto a sujeito e, com isso, encontrar amarrações mais saudáveis com seu desejo.

Palavras-Chaves: Psicomotricidade Relacional; autismo; clínica.

INTRODUÇÃO

A texto a seguir aborda a prática clínica da Psicomotricidade Relacional junto a uma criança de 2 anos que apresentava sintomas compatíveis com o quadro de Transtorno do Espectro Autista e atraso global no desenvolvimento com predominância nas funções da linguagem e da comunicação.

A Psicomotricidade Relacional é uma “práxis” preventiva e terapêutica que enfatiza a motricidade humana e sua relação de reciprocidade com o psiquismo. Ela prioriza o movimento espontâneo, a comunicação tônica e o jogo simbólico, para que o sujeito possa contar de si pelo viés do discurso corporal, contatar com seu desejo, elaborar conflitos e desenvolver-se na busca de um viver melhor e mais saudável. Nessa metodologia, o corpo-sujeito do psicomotricista relacional está sobremaneira implicado nas intervenções psicomotoras (GUERRA, 2012, p.50).

Considerando-se as especificidades da criança autista, a Psicomotricidade Relacional se configurou como um método promissor na busca de promover uma amarração mais saudável da criança consigo e com o mundo, ao possibilitar um espaço de liberdade para expressão de emoções e sentimentos em relação a si, ao outro e ao meio. Além disso a ênfase dada à comunicação corporal e à possibilidade do sujeito poder discursar sobre si pela via do corpo, favoreceu o acesso a núcleos psicoafetivos que se encontravam fixados em etapas anteriores do desenvolvimento infantil.
No que se refere à liberdade de expressão, Vieira, Batista e Lapierre (2013, p. 39-40) afirmam que a Psicomotricidade Relacional:

[...] proporciona um espaço de legitimação dos desejos e dos sentimentos no qual o indivíduo pode se mostrar na sua inteireza, com seus medos, desejos, fantasias e ambivalências, na relação consigo mesmo, com o outro e com o meio, potencializando o desenvolvimento global, a aprendizagem, o equilíbrio da personalidade, facilitando as relações afetivas e sociais.

Sobre a importância das vivências corporais na tenra idade, Lapierre e Aucouturier (2012), ressaltam que a qualidade destas experiências, nesta etapa, influenciam sobremaneira o acesso e a formação de uma imagem coerente do eu corporal, indispensável para a aquisição da identidade.

Nesse contexto o psicomotricista tem a possibilidade de utilizar seu corpo - recurso primário para estabelecer a empatia e a comunicação – e o jogo, ferramenta básica de intervenção (LLORCA e SÁNCHEZ, 2003). A disponibilidade do psicomotricista e sua implicação corporal nos jogos provoca nas crianças o desejo de brincar e marca um encontro em que tanto ela quanto o adulto crescem juntos.

Este artigo, porém, aborda o caso de uma criança que demostra pouca intenção comunicativa, o que requer por parte do profissional a necessidade de se conectar com ela num nível mais profundo e apostar que em suas expressões, mesmo as mais rudimentares, haviam mensagens capazes de tocar o outro e, portanto, ali se encontrava um sujeito, mesmo que não se apresentasse como tal.

Ao interpretar a linguagem do corpo, priorizando a decodificação do que as crianças podem denunciar por meio de seu comportamento manifesto e latente, a Psicomotricidade Relacional mostra-se como uma importante ferramenta capaz de viabilizar a sua evolução. (BATISTA et al, 2011).

Desenvolvimento

Marco é encaminhado à clínica de Psicomotricidade Relacional do Ciar2 de Curitiba, aos 2 anos de idade, por sua neuropediatra e pela coordenação da escola onde estuda. A hipótese de autismo, se configurava como uma suspeita em função de sua pouca idade.

No primeiro atendimento à família apenas a mãe estava presente. Ela refere que Marco começou a se comportar de maneira diferente após a separação dos pais. Segundo ela, o filho era muito próximo ao pai, porém, com o divórcio, a mãe e a criança se mudaram para Curitiba, sua cidade de origem e, com essa mudança, a criança praticamente não o viu mais.

Antes da separação dos pais e mudança de cidade, Marco se interessava por outras crianças e já dominava um vocabulário de 60 palavras (Anexo 1).

A partir de então Marco parou de falar, se desinteressou pelos coleguinhas da escola e primos, passou a apresentar condutas de evitação do olhar com seus professores e familiares. Dessa forma, a procura por respostas para a nova maneira de Marco ser e estar no mundo levou a mãe buscar ajuda profissional.

Nos atendimentos iniciais Marco mostrava-se agitado. Seu ritmo acelerado o impedia de iniciar, permanecer e finalizar as atividades e, consequentemente, de encontrar o outro. A falta de relações duradouras dificultava a inscrição de novas marcas psíquicas. Jerusalinsky (2004, p. 29) ressalta esse aporte afirmando que “o que marca o ritmo do desenvolvimento é o desejo do Outro, que opera sobre a criança através de seu discurso, marcas simbólicas que o afetam”, uma vez que que o sujeito se estrutura a partir da relação com o Outro.

Esse ritmo intenso, porém, sem entrega o mantinha distanciado e ausente. Sentir a presença do outro e implicar-se numa relação estava fora de cogitação. Marco mantinha-se ocupado com o excesso do fazer que lhe aplacava a angústia de existir, ou seja, esse processo defensivo parecia se configurar como um mecanismo de proteção emocional e de evitação da interação com o outro que passou a ser uma ameaça após a experiência dolorosa de separação.

Marco desenvolveu um transtorno relacional em um momento de ruptura. Nesse lugar de dor de onde foi convocado a responder, ele não possuía recursos simbólicos suficientes para encontrar uma saída possível e seguir em frente.

Ao longo dos atendimentos e por meio dos objetos clássicos da Psicomotricidade Relacional, Marco se expressava e contava de si. Mas, durante o jogo, que o lhe interessava era apenas o movimento. Correr, subir, descer, pegar, soltar, entrar, sair, cair, levantar. Não havia um objeto preferido, eleito. Se objeto lhe era retirado, não havia reação, não havia apego, não pedia, não chorava, não reclamava, não compartilhava, não havia desejo de relação.

Com o passar dos atendimentos a criança começou a se interessar pelos objetos, a nomeá-los e a demostrar seu interesse-los em mantê-los consigo, sendo capaz, inclusive, de estabelecer relações de disputa pela posse do objeto, assinalando a primeira manifestação em forma de agressão simbólica. Tal atitude demostrava a diminuição do distanciamento entre os mundos externo e interno, pois ao suportar a construção externa remontava a reconstrução interna.

Os objetos passaram a ser entendidos como uma extensão do seu corpo e, por tanto, Marco mostrava dificuldade em partilhá-los.

O surgimento da agressividade nas sessões de Psicomotricidade Relacional assinalou um momento importante para Marco. É o período do “não” e do “eu não quero” que manifesta a oposição ao desejo do adulto. Este período necessariamente conflitante da relação adulto-criança é indispensável para a obtenção da autonomia e da identidade. O desejo de agredir parece ser essencialmente um desejo de afirmação. (LAPIERRE e LAPIERRE, 2010).

Embora a relação do Marco com a sua mãe tenha sido sempre permeada por uma proximidade corporal com tonalidades afetivas marcantes, no início do trabalho Marco despedia-se dela para entrar na sala de atendimento, sem esboçar incomodo ou insegurança. Era obediente, sem desejo e tendia a aceitar pessoas estranhas docilmente. Com o passar dos atendimentos a separação da mãe passou, esporadicamente, a ser motivo de ansiedade e irritação.

No que se refere a etiologia do autismo, a literatura (Assumpção Jr e Pimentel, 2000; Bosa, 2006; Klin, 2007; Schimt e Bosa, 2003) consente em afirmar que se trata de um transtorno invasivo de desenvolvimento caracterizado por prejudicar três áreas abrangentes: interação social, comunicação e limitações e estereotipias de comportamentos e interesses.

Larbán (2012) esclarece que não há causa única do autismo, nem genética, nem ambiental. Há uma causalidade plurifatorial que engloba tantos fatores de vulnerabilidade psicobiológica entre eles os constitucionais e genéticos, como os fatores de risco psicossociais e socioculturais, incluindo a interação com o entorno, numa estreita relação que potencializa uns aos outros. Mas para Gadia, Tuchman e Rotta (2004, pg. 84), “na ausência de um marcador biológico, o diganóstico de autismo e a delimitação de seus limites permanece uma decisão clínica um tanto arbitrária”.

A criança, desde seu nascimento, e até antes, é um organismo, um todo, uma estrutura viva, programada e adaptada ao entorno cuidador que espera encontrar, entrando imediatamente em relação com ele, para reprogramar-se em função da experiência oriunda dessa relação. Esse outro que vai encontrar é um outro organismo, a mãe ou pessoa que irá exercer a função materna, que, por sua vez, está programada para entrar em relação com o bebê e reprogramar-se ela também em função dessa relação.

Sob o ponto de vista neurofisiológico, considera-se que o cérebro do recém-nascido está programado para entrar em relação com uma pessoa que a ajude a reprogramar-se em função da interação com ela. O desenvolvimento e evolução são concebidos com uma modificação adaptativa do programa inato em contato com o outro. Em termos psicodinâmicos, desde o nascimento a criança dispõe de uma parte organizada da personalidade (um eu) com uma certa representação de si mesmo e uma relação diferenciada de si mesmo com a mãe ou equivalente (MANZANO, 2010, apud LARBÁN, 2012).

Os mesmos autores referem que a estrutura da personalidade do bebê se modifica nesta relação. Quaisquer que sejam os fatores intervenham (lesões, genética, conflitos, etc), os transtornos do desenvolvimento não são jamais uma simples expressão desses fatores se não reorganizações ou ajustes do programa para continuar o desenvolvimento apesar das alterações.

Entre essas reorganizações ou ajustes se encontram os transtornos do espectro autista. Como se trata de ajustes adaptativos do programa, não são jamais rígidos ou imutáveis. Pelo contrário, podem evoluir novamente com a interação. Dessa forma o desenvolvimento é da ordem do relacional.

As diversas medidas pedagógicas, educativas, farmacológicas, psicoterápicas, etc, terão sempre como objetivos o estabelecimento de uma relação e a garantia de sua continuidade, para permitir uma nova mudança na organização, ou seja, na estrutura da personalidade. (MANZANO, 2010, apud LARBÁN, 2012).

É certo que Marco apresentava sinais de risco de desenvolvimento tais como atraso motor (equilíbrio, andar, sentar, engatinhar) e na fala, que davam notícias de uma certa fragilidade egóica, antes da separação dos pais. Porém esses fatores de riscos isolados não possuíam força suficiente para desencadear uma patologia. Já sua presença acumulada e repetitiva na sua interação com o mundo em uma etapa importante da sua constituição de seu psiquismo o levou a um desvio em seu desenvolvimento.

A despeito de sua agitação psicomotora, Marco tendia a buscar as relações corporais, sempre que o adulto se encontrava no chão, com conotações afetivas, porém simbióticas, por estar fixado na onipotência do bebê (POGGI, 2004).

Foi importante aceitar essa demanda, para que ele encontrasse ressonância no corpo do psicomotricista relacional e, como isso, ressignificar relações primárias. Esse tipo de comunicação infraverbal possibilitou o surgimento de uma modalidade de relação mais regressiva na qual Marco se engajava rapidamente sempre buscando contato direto com a pele do colo e barriga, o que evocava a maternagem.

Neste momento de seu processo evolutivo, ele investia também em espaços simbolicamente fechados, representantes do espaço “dentro”, como por exemplo em caixas, dentro tecidos, da cabana, do paraquedas, entre outros.

Repetidas vezes Marco também procurou o contato pelas costas, posicionando-se entre as pernas da psicomotricista relacional, situando-se no eixo corporal do outro. “Essa busca espontânea da concordância dos eixos, ou pelo menos, dos planos de simetria corporal, confirma a importância atribuída por Wallon à noção de eixo corporal. Esta é, talvez, (...) uma busca inconsciente de identificação com o outro” (AUCOUTURIER e LAPIERRE, 1986, p.32), bem como uma procura por uma estrutura externa que pudesse favorecer a construção da sua estrutura interna. No entanto ele precisava voltar-se para o mundo, falar, descolar-se, ou seja, sair do “dentro” que o acolhia, mas também que o impedia de tornar-se sujeito. Nessa dinâmica, Marco ousa jogar com seu desejo, ou seja, afasta-se e aproxima-se, rompe a relação e a retoma repetidas vezes “jogando com as distâncias e, cada vez, reencontrando o prazer do contato corporal”. (...)

Ele estava “jogando com seu desejo, o qual mantém e amplifica” por meio dessas idas e vinda, assegurando-se da certeza de um prazer que pode reencontrar quando quiser. (AUCOUTURIER e LAPIERRE, 1986, p.33). A partir desse momento Marco passou a investir na relação corporal com intencionalidade.

Sua busca pelo outro não era mais somente da ordem da necessidade, mas sim da do desejo.
Larbán (2012) explica que a acumulação repetitiva e duradoura de fatores de risco, assim como a potencialização de uns para com os outros, incrementa a possibilidade de um distanciamento do desenvolvimento saudável, pois é certo que a grande capacidade de resiliência das crianças pequenas até os 3 anos, ou seja, a habilidade para manter um desenvolvimento normal em condições desfavoráveis, tem seus limites.

O que se percebia é que em Marco havia uma falha em sua capacidade empática ao apresentar uma desconexão emocional duradoura, com a intenção de proteger-se dos sofrimentos que não podia assimilar. A empatia, necessária para o desenvolvimento do ser humano como sujeito, com subjetividade própria, possibilita o acesso à intersubjetividade, facilitando a capacidade de reproduzir em seu próprio psiquismo os sentimentos, movimentos, interações e motivações do outro, tomando como base e veículo de transmissão as emoções, os pensamentos, e representações associadas, sejam elas conscientes ou inconscientes (SIMAS e GOLSE, 2008; LARBÁN, 2012).

Dessa forma, suas condutas de evitação da relação, bem como a busca de um refúgio compensatório no excesso de estimulação sensóriomotora ou em relações afetivas simbióticas, indicava uma retirada relacional e emocional de si na interação com o outro.

Sua capacidade para se unir, se separar e se diferenciar do outro exigia previamente um conhecimento de si e do outro, ou seja, para compartilhar experiências vividas com a psicomotricista relacional, Marco necessitava percebê-la como alguém externo a ele.

Foi com muita alegria que Marco se descobriu no espelho, por meio da tela da câmera de filmar os atendimentos. Olhava a si mesmo e repetia seu nome. Por diversas sessões Marco reviveu essa alegria e confirmou: eu me reconheço.

A criança começa a se referir a si própria em terceira pessoa e vai se tornando sujeito a partir de uma linguagem que importa do outro. Nesse momento, conforme postula Lacan (1998) houve uma transformação no campo da subjetividade e Marco passou a assumir uma imagem de si e a compartilhar essa descoberta com a família e na escola.

A capacidade de intersubjetividade permite regular a intimidade do sujeito em sua relação com o outro e reforçar o sentimento de pertença grupal. Se não há encontros interativos e empáticos acompanhados de separação e diferenciação do outro, não há possibilidade para o sujeito de desenvolver a capacidade de estabelecer uma relação intersubjetiva com o outro, ou seja, de se relacionar com a subjetividade do outro, a partir de sua própria subjetividade. (LARBÁN, 2012).

Atualmente Marco domina um vocabulário de mais de 300 palavras e consegue utilizar alguns verbos e adjetivos. Verbaliza pensamentos e, além disso, começa a reconhecer as cores. Seu interesse pelos colegas da escola é retomado, alternando momentos que elege para estar sozinho com o brincar compartilhado. Sua preferência é por crianças mais dinâmicas e, apesar de buscar o contato com a maioria, demostra predileção por 4 amiguinhos, aos quais se refere chamando-os pelo nome tanto em casa e quanto atendimento de Psicomotricidade Relacional.

Com o retorno da linguagem oral, Marco, aos poucos, abandona o movimento incessante que apresentava no início do trabalho de levar à mão na boca. Essa ação envolvia uma fixação na fase oral, mas também se configurava num recurso utilizado para diminuir a ansiedade e a aplacar a angústia. Ao introduzir a mão na boca ele preenchia um vazio existencial. No decorrer das sessões somente em situações de grande excitação Marco mordia a própria mão.

Se estava preso num circuito pulsional do fazer pelo fazer, agora demostra pensar e refletir sobre suas ações, antes de inicia-las, buscando o outro para uma brincadeira em que é preciso esperar, reagir, pedir, responder.

O jogo simbólico e o faz de conta começam a se inserir nos atendimentos. Outrora Marco estava perdido em seu mundo fantasmático, agora é o lobo quem vai pegar o Marco que se esconde. Por meio do brincar, na Psicomotricidade Relacional, tendo um parceiro de jogo, Marco está, aos poucos, fazendo a travessia de uma margem a outra de si mesmo, ou seja, de objeto a sujeito.

O pensamento abstrato começa a desenvolver-se na medida em Marco vai se tornando capaz de solucionar pequenos problemas estratégicos, como fechar a cabana para o lobo não entrar, alimentar os animais, entre outros. Dessa forma a representação de papéis passa a ser inserir no jogo, embora rudimentar, pois o seu brincar ainda possui características pré-simbólicas, como o aparecer e desaparecer.

Suas competências motoras se fortalecem à medida em que percebeu, com mais consciência, o que seu corpo é capaz de fazer. Ainda necessita de ajudar para subir na escada, vez que ainda não tem integrado o seu corpo como uma unidade e, dessa forma, os pés se confundem. Seu tônus torna-se mais firme ao correr, subir, sentar, deitar, entrar, sair. Antes Marco se machucava, tombava, deixando-se cair como um objeto. Agora ele começa a fazer cair o objeto como um sujeito do desejo. Entre o nada e a dor, Marco optava pela dor no campo do real do corpo.

Atualmente Marco dá indícios de que começa a perceber a potencialidade de seu corpo, embora sua consciência e imagem corporal ainda rudimentares, lhes tragam alguns percalços na relação com os amiguinhos, pois, muitas vezes, não é capaz de frear e modular seu desejo que se personifica no corpo de maneira intensa, chegando a derrubar e “atropelar” os colegas.

Dito em resumo o que se percebe é que na dimensão social, Marco mostrava dificuldade para relacionar-se com seus coetâneos. No que se refere à capacidade de compartilhar, havia a existência de atenção e ação conjuntas, embora muito rudimentares, e sem preocupação conjunta. Quanto às suas capacidades intersubjetivas e de compreensão de contextos, observou-se a presença de uma intersubjetividade e de uma consciência, ambas primárias, para perceber e se ajustar à complexidade das relações.

Diante desse quadro buscou-se investir na disponibilidade corporal para possibilitar um contato corporal capaz de remontar simbolicamente suas relações primárias, utilizando-se para isso os mediadores corporais da comunicação (gesto, olhar, voz, empatia, mímica).

As estratégias de invenção priorizaram os jogos de repetição partindo do interesse da criança, os de antecipação para ajudá-lo a tomar consciência da presença do outro e de seus próprios estados emocionais e os jogos de imitação, sendo o adulto, nesse caso, o espelho da criança para favorecer a surgimento da consciência de si.

No que se refere à ausência de preocupação conjunta as intervenções psicomotoras permearam a imitação, a reciprocidade básica, o encontro de olhares e a espera programada oportunizado as demandas de ajuda. Quanto à capacidade de compreender e ajustar-se à complexidade das relações, investiu-se no prazer vivido no jogo espontâneo e corporal, atentando-se sempre para importância de nomear os objetos e ações vividas, inclusive nos momentos de verbalização inicial e final para elucidar os estados emocionais, evitando-se a verborragia e a racionalização. (LLORCA e SÁNCHEZ, 2003).

Outrossim Marco indicava possuir dificuldades nas funções comunicativas e da linguagem tanto expressiva quanto receptiva, por suas limitações na intersubjetividade e na possibilidade de aceder ao campo do simbólico, já que a comunicação acontece por meio de significantes dos atos instrumentais o que exige uma noção de que os outros possuem experiências internas e que são capazes de compartilhá-las. (RIVIERE, 1977, apud LLORCA e SÁNCHEZ, 2003).

Perante essas dificuldades buscou-se decodificar a expressividade psicomotora da criança, utilizando-se do diálogo tônico e da implicação em seu movimento espontâneo para estabelecer estratégias de comunicação.

Diante de suas condutas comunicativas, por meio das quais estabelecia trocas com o mundo e que se apresentavam sem intenção declarativa, e de sua linguagem expressiva inexistente, foi necessário implementar estratégias interventivas que elucidassem a espera programada, os sistemas alternativos de comunicação, os jogos de estimulação labiríntica e a espera de gestos antecipatórios que demandassem repetição.

Além disso para estimular a linguagem para que ela tivesse um sentido para Marco, focou-se também no jogo com emissões sonoras que permitissem nomear objetos que lhe interessavam ou utilizava. Propiciar situações de jogo compartilhado em um espaço limitado também elevou sobremaneira as suas condutas comunicativas. Ademais estimular a sua participação nos rituais de entrada e saída favoreceu as noções de tempo, espaço e limite. (LLORCA e SÁNCHEZ, 2003).

A respeito das competências referentes à antecipação, flexibilização mental e comportamental Marco mostrou-se capaz de evoluir significativamente nesse aspecto, encontrando, pouco a pouco, sentido para as atividades que realizava.

Jogos de antecipação que proporcionaram o surgimento de pautas de comunicação intencional promoveu o desenvolvimento da flexibilidade necessária para ajustar a suas representações mentais à realidade. Em situações simples Marco já conseguia utilizar condutas antecipatórias. Onde havia inflexibilidade comportamental, como, por exemplo, nas brincadeiras repetitivas buscou-se introduzir modificações graduais para promover outras possibilidades de interação e significado. (LLORCA e SÁNCHEZ, 2003).

Sobre a capacidade de simbolizar, buscou-se desde a simples manipulação do objeto ao seu uso funcional, para, em seguida, incrementá-lo em situações de jogo simbólico. (LLORCA e SÁNCHEZ, 2003).

Como exemplo pode-se citar o uso do bastão que antes era um objeto para morder, deitar em cima, segurar, gradativamente, começou a ser utilizado como uma espada para atingir o outro. Inicialmente os jogos aos quais Marco aderia eram todos de conteúdo pré-simbólicos como aparecer/desaparecer; empilhar/derruba; abrir/fechar; entrar/sair. Esse tipo de jogo fez parte das sessões por um longo tempo e ainda estão presentes. Aos poucos foi possível introduzir brincadeiras que reproduziam situações reais como alimentar, dormir para facilitar o desenvolvimento das competências de imaginativas.

Considerações Finais

As sessões com o Marco têm sido realizadas há um ano e seguem em curso, apesar do seu progresso em se comunicar afetivamente. Após certo tempo de atendimento, foi proposto à família que Marco participasse também de um grupo de Psicomotricidade Relacional com crianças de sua faixa etária.

Porém Marco é atendido à noite por sua mãe estar impossibilitada de se ausentar do trabalho. As sessões com as crianças pequenas acontecem sempre durante o dia, dessa forma Marco foi atendimento individualmente na maior parte das sessões. Há pouco tempo uma menina de sua idade começou a participar das sessões junto com Marco.

Em função de seus progressos, o diagnóstico de autismo não está fechado pela neurologista que segue observando-o clinicamente. É importante ressaltar que o autismo é aqui compreendido segundo um modelo relacional que vai além do paradigma deficitário-cerebral, vigente na contemporaneidade, em que o ambiente exerce sobremaneira sua força.

Os sintomas inicialmente apresentados pela criança, ao ser encaminhada para a clínica de Psicomotricidade Relacional, foram significativamente amenizados. Atualmente Marco apresenta-se como uma criança presente, traquina, falante e interessada pelas pessoas, sejam elas adultos ou crianças. Saindo do lugar de objeto para o de sujeito, ele tem buscado intensamente a presença e o reconhecimento do outro para seu existir, afirmando seu desejo de se sentir desejado.

Referências Bibliográficas

ASSUMPÇÃO JR, F. B.; Pimentel, A. C. M. Autismo infantil. Revista brasileira de psiquiatria, v. 22, p. 37-39, 2000.

BATISTA, M. I. B.; LEÃO, C. M. C. C.; VIEIRA; J. L. OLIVEIRA, C.M.; BELLAGUARDA, A. P. C.; GUERRA, A. E. L. A falta no corpo do corpo do outro: a clínica psicomotora relacional no atendimento a uma criança autista. Congresso internacional sobre o autismo: prevenção, intervenção e pesquisa. Curitiba, 2011.

BOSA, C. A. Autismo: intervenções psicoeducacionais Autism: psychoeducational intervention. Rev Bras Psiquiatr, v. 28, n. Supl I, p. S47-53, 2006.

GADIA, C. A.; TUCHMAN, R.; ROTTA, N. T. Autismo e doenças invasivas de desenvolvimento. Jornal de pediatria, v. 80, n. 2, p. 583-594, 2004.

GUERRA, A. E. L. O processo de supervisão na formação do psicomotricista relacional. Dissertação de Mestrado em Psicomotricidade Relacional. Universidade de Évora. Portugal: 2012.

JERUSALISNKI, A. e col. Psicanálise e Desenvolvimento Infantil. 3a. edição. Porto Alegre: Artes e Ofícios Editora, 2004.

KLIN, A. Autismo e síndrome de Asperger: uma visão geral. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 28, n. 1, p. 3-11, 2006.

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LAPIERRE, A., & ACOUTURRIER, B. A Simbologia do Movimento. Fortaleza: CIAR e RDS Editora/CIAR: 2012.

LAPIERRE, A.; LAPIERRE, A. O adulto diante da criança de 0 a 3 anos – Psicomotricidade Relacional e formação da personalidade. Curitiba: UFPR editora/CIAR, 2010.

LARBÁN; J. V. Vivir con el autismo, una experiência relacional. Barcelo, Espanha: Octaedro, 2012.

LLORCA, M. L.; SÁNCHEZ, J. R. Creciendo juntos un acercamiento desde la educación psicomotriz a las personas con espectro autista. Revista iberoamericana de psicomotricidad y técnicas corporales. ISSN-e 1577-0788. Nº. 10, pg 11-24, 2003.

POGGI, A. F. Transtornos psicomotores na infância e da adolescência - Roda Viva. Anais do IX Congresso Brasileiro de Psicomotricidade. Olinda/PE: SBP, 2004.

SCHMIDT, Carlo; BOSA, Cleonice. A investigação do impacto do autismo na família: revisão crítica da literatura e proposta de um novo modelo. Interação em Psicologia (Qualis/CAPES: A2), v. 7, n. 2, 2003.

SIMAS, R.; GOLSE, B. Emphatie(s) et intersubjectivité(s). Quelques réflexions autor de leur développment et de ses aléas. La psychiatrie de lénfany. LI, 2, pg 339-356. Paris: PUF, 2008.

VIEIRA, J. L; BATISTA, M. I. B; LAPIERRE, A. Psicomotricidade Relacional: A teoria de uma prática. 3ª ed. Fortaleza: RDS editora/CIAR, 2013.

4 Respostas

  1. A experiência com a Psicomotricidade Relacional certamente fez toda diferença na vida desse pequeno! Parabéns pelo esclarecedor estudo e por compartilha-lo!
  2. Obrigado Ana, por compartilhar está experiência clínica com todos nós. Isto contribui com nossa atuação profissional no campo da psicomotricidade.

Deixe um comentário