A Educação Psicomotora e a Construção da Expressão de Gênero na Infância

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE I CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOMOTRICIDADE XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOMOTRICIDADE

A EDUCAÇÃO PSICOMOTORA E A CONSTRUÇÃO DA EXPRESSÃO DE GÊNERO NA INFÂNCIA

AUTOR:

Érica Fróis
Psicóloga, psicomotricista, docente no curso de psicologia na Puc Minas.
Doutora em psicologia.
Ericafrois@gmail.com

RESUMO

O artigo pretende promover uma reflexão sobre a educação psicomotora na escola como um espaço de construção da expressão de gênero na infância. Destaca o jogo psicomotor espontâneo, localizado pelo Método Aucouturier, como espaço privilegiado de um fazer democrático e igualitário. De forma a viabilizar uma compreensão mais ampla e abrangente do fenômeno psicomotor, intentou-se apresentar um diálogo a partir da premissa do Desenvolvimento Humano e posteriormente um olhar crítico a partir das lentes do Construcionismo Social.

A partir desse debate o estudo aponta o jogo psicomotor, na prática educativa, como um fazer que promove o desenvolvimento da criança e aponta, a partir da reflexão por parte do Construcionismo, uma vertente crítico-reflexiva, que sustenta a importância da co-construção dos modos de brincar. A partir do jogo psicomotor as crianças poderão se nomear como ‘meninos’ ou ‘meninas’ para além de um discurso heteronormativo e binário, no qual há modos específicos para meninos e meninas brincarem.

A ideia é apontar o jogo psicomotor como potente co-construtor de realidades inclusivas, voltadas à premissa da valorização da diversidade. Ao fazerem uso desse jogo psicomotor espontâneo, as crianças coexistem com as diferenças e subjetividades.

O estudo apresentará um relato de práticas psicomotoras construídas ao longo de um projeto de extensão com crianças na escola: o projeto Brincar. O artigo tem o intuito de contribuir com profissionais que trabalham com crianças, bem como com pais e estudiosos que se ocupam em investigar o brincar e suas relações com a construção de gênero na infância.

Palavras-chave: educação psicomotora- infância- expressão de gênero- jogo psicomotor- Psicomotricidade

INTRODUÇÃO

A prática psicomotora educativa apresenta, em sua essência, condições que promovem e enaltecem a autonomia e autenticidade da criança, podendo esta, exercer o prazer em afirmar-se. A educação psicomotora, sendo uma prática voltada ao desenvolvimento psicomotor em suas bases corporais, que são maturativas, relacionais, sociais e cognitivas, atua na direção de potencializar a criança em prol de um desenvolvimento.

Este, embora parta de premissas adaptativas, deve estar situado na potência criativa da criança levando em consideração sua busca por expansão, afirmação e transformação do mundo em que vive. De modo a ampliar esse ponto de discussão será apresentado o campo do Construcionismo Social, de modo a propor diálogos e análises em paralelo com aqueles tecidos pela premissa do Desenvolvimento Humano. Entende-se que, para isso, as práticas psicomotoras educativas mantêm, como condição, o favorecimento da subjetividade da criança, o que incorre em uma perspectiva de valorização e inclusão das diferenças e individualidades.

Nesta direção, entende-se como expressão de gênero o modo de situar-se em relação à categoria social ‘ser menino’ e ‘ser menina’. Trata-se de um processo de construção que implica em expressar-se, nomear-se enquanto menino ou menina. O brincar espontâneo proposto pelas práticas psicomotoras educativas promove a experimentação de vários fazeres e brincares, incorrendo em classificações menos binárias e estereotipadas do ser menino e do ser menina.

Através da metodologia do brincar a educação psicomotora colabora com uma construção da identidade de gênero mais igualitária e coerente com o sistema de experimentações e construções de cada pessoa. A partir do campo do Construcionismo Social, segundo Nogueira (2001), é possível refletir que a construção das expressões de gênero é produzida na relação discursiva entre os sujeitos, logo, na relação viabilizada pelo jogo psicomotor na educação psicomotora, meninos e meninas constroem suas expressões de gênero.

Por serem construído nas relações sociais, o processo de construção da expressão de gênero é dinâmico, intercambiável e em constante transformação ao longo da vida dos sujeitos.

Cabe-se considerar aqui um debate à parte sobre o enviesamento proposto pela perspectiva do desenvolvimento humano e pelo campo do Construcionismo Social. Tais perspectivas se diferem em suas análises e defesas, contudo, avaliou-se como importante trazer à tona a conversa entre estas duas formas de se compreender o organismo psicomotor.

Sendo o corpo e o movimento a condição explorada neste estudo, há que se contemplar que a criança, a partir dessas premissas, não fala apenas de um lugar evolucionista ou maturativo, considera-se também uma dimensão dinâmica, não estática, em constante movimento que entrecruza o saber desenvolvimentista.

Nesta medida, considerando esse enviesamento de saberes, a Psicomotricidade enquanto campo de estudos, se apresenta subsidiando uma reflexão voltada para a compreensão do homem pela via do corpo e do movimento. Contempla a defesa a práticas capazes de promover e destacar o corpo em seus aspectos físicos, psíquicos e sociais, favorecendo a relação e a comunicação da pessoa com o mundo que a cerca.

A partir do campo do Construcionismo Social podemos sustentar uma lógica menos estática e mais dinâmica, na qual os parâmetros do desenvolvimento localizam a criança em um determinado tempo, recorte e enquadre. Tal localização é sempre temporária visto que, na relação com o outro, novas transformações e construções são feitas.

Tendo como referência a criança, a Psicomotricidade se propõe a compreender tais relações, apontando, em sua dimensão interventiva, a terapia, a educação e a reeducação psicomotoras, bem como suas extensões e ramificações. Neste estudo será dado foco à educação psicomotora e, nesta linha de intervenção, a um dos métodos circunscritos no campo da Psicomotricidade.

A prática psicomotora Aucouturier é uma das metodologias construídas a partir de um campo teórico localizado, que propõe a expressividade motora livre como condição expressiva e interventiva que, na lógica educativa, visa promover o desenvolvimento da criança. O brincar é também um lugar para a criança ‘fazer’ gênero, construindo sua própria expressão de gênero.

Neste sentido, apresenta-se, o brincar subsidiado pelo Método Aucouturier, em favor de uma experiência lúdica mais democrática, em favor das experimentações, criações e potencialidades.

DESENVOLVIMENTO

A Psicomotricidade é uma área de conhecimento que estuda o homem com seu corpo em movimento na relação com o mundo. Contempla intervenções pela via da educação, reeducação e terapia psicomotora. Sustenta práticas ancoradas em métodos e técnicas diversos, cada um com sua própria característica e especificidade.

A Educação Psicomotora se ocupa de promover o desenvolvimento psicomotor tendo como foco o processo de conhecimento e reconhecimento do corpo próprio na relação interpessoal. Trata-se de favorecer o processo de apropriação e construção do sistema psicomotor tendo em vista a relação sujeito - mundo.

Sendo a Psicomotricidade uma área de conhecimento interfacetada, construída a partir de diferentes métodos e técnicas, localizamos a prática psicomotora educativa, proposta por Aucouturier, como um conjunto interventivo que se apresenta pela via do corpo expressivo e que não deixa de se atentar aos parâmetros desenvolvimentistas. Voltado à ajuda na infância, a perspectiva de Aucouturier (2007) considera a criança como direcionada ao crescimento, buscando se expressar e exercer sua potencialidade.

Com base na educação psicomotora, este texto busca apresentar um trabalho de intervenção com crianças na escola que, através da prática psicomotora educativa Aucouturier, possibilitou um espaço de diálogo e coconstrução de práticas inclusivas de construção da expressão de gênero na infância. A partir do jogo psicomotor espontâneo, proposto pelo Método Aucouturier, foi possível promover um espaço de reflexão e construção de realidades mais igualitárias em relação à expressão de gênero na infância.

Tomando-se a definição de que o gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 86.). Dessa forma, o gênero é fruto de uma construção social dos sentidos atribuídos às diferenças entre os sexos.

O gênero é uma das formas, a primária, de se significar as relações de poder entre homens e mulheres. Relações hierárquicas e assimétricas produzem um polo dominador e outro submetido, transformando as diferenças em desigualdades. Na cultura atual, observa-se que homens, brancos e heterossexuais são especialmente postos no polo da dominação, enquanto as mulheres e os homens não brancos e não heterossexuais, no polo submetido.

Com base em Scott (1990), pode-se compreender que a expressão de gênero foi desenvolvida com base em discursos organizados em um sistema de significados disponíveis aos indivíduos, de forma a darem sentido ao que é considerado como próprio do feminino e do masculino. O corpo é a pessoa e, como tal, revela toda a condição expressiva da pessoa.

Desde os primeiros anos de vida a tessitura do gênero já está sendo posta. A criança vai aprendendo, através da socialização, como é ‘ser menino’ e como é ‘ser menina’. A partir da sua relação com a cultura a criança vai construindo sua expressão de gênero. Por meio do corpo e dos movimentos, bem como pelas palavras, a criança vai construindo-se enquanto ser no mundo.

Por vezes é possível perceber que apontar ao corpo um caráter heteronormativo considerado adequado para homens e para as mulheres bem como definir uma classificação binária de gênero mostram discursos dominantes, apontando práticas discursivas que desconsideram as expressões de meninos e meninas sobre seus processos de construção das próprias identificações de gênero. As práticas heteronormativas têm como um de seus pilares a naturalização dos papéis de gênero, pois estes são considerados como derivações do sexo biológico.

Mostrar como o jogo psicomotor no campo da educação psicomotora, constrói realidades mais igualitárias e democráticas, possibilitando a meninos e meninas uma experimentação lúdica, problematiza os estereótipos de gênero, o que colabora com a constituição de novas realidades e discursos sobre o ‘construir-se menino e menina’. A corporeidade das crianças é tomada como objeto do discurso pedagógico no cotidiano da escola.

Segundo Fróis (2018) as crianças do sexo feminino são orientadas, por exemplo, a sentarem-se com as pernas fechadas, em uma postura considerada feminina, e os meninos recebem a orientação de conduzir seus gestos e posturas de modo mais “rude”, ou seja, de forma que eles não sejam confundidos com as mulheres; chamar uma criança do sexo masculino de “mulherzinha” é tomado como um ato ofensivo.

Considerando que esses exemplos circunscrevem a realidade escolar e social, é plenamente pertinente e importante que sejam promovidas práticas e intervenções em prol de uma educação mais inclusiva, que promova a valorização das diferenças e subjetividades, que questione os modos estereotipados de ‘ser menino’ e de ‘ser menina’.

O jogo psicomotor proposto pela metodologia Aucouturier promove esse encontro democrático, pois valoriza a potencialidade criativa e inventiva da criança, permitindo que meninos e meninas brinquem daquilo que quiserem, sem serem cerceados com comandos ‘isso é de menino’, ou ‘isso é de menina’.

A educação psicomotora pautada em premissas formativas que favoreçam o desenvolvimento psicomotor da criança em sua dimensão física, relacional, social e cognitiva, considera a subjetividade infantil e nesta medida, fundamenta uma construção da expressão de gênero na infância menos sexista e binária.

A criança, ao poder experimentar o brincar sem ser contida a partir do ‘brinquedo para menino’ ou ‘brinquedo para menina’, pode construir-se menino ou menina a partir de todo o repertório de experimentações a que o faz de conta proporciona. Pode brincar de casinha, carrinho, ser mãe, filha, irmão, avó ou avó, pai, cachorro e todo o sortilégio criativo que deseja viver.

Nesta condição pode construir-se menino ou menina a partir de um fazer mais humanitário, que passe pelas questões do cuidado, da gentileza, do encorajamento e enfrentamento. Meninos e meninas podem exercer tais papéis no brincar sem serem considerados ‘desviantes’.

Logo, a partir da premissa psicomotora, o corpo em movimento pode expressar-se , experimentar-se construindo sua própria expressão de gênero a partir de fazeres e marcas diversas, quer sejam da ordem do encorajamento, do cuidado e da colaboração mútua. Os corpos de meninos e meninas estarão assim, disponíveis para viverem o cuidado, a dominação, a troca de papéis e as funções sociais na infância e pela vida.

Considerando tais premissas a PPA sustenta uma intervenção voltada à educação psicomotora, potencializando a condição da criança de ser ela mesma e desenvolver-se em direção a um ajustamento social. As condições para o desenvolvimento da prática precisam ser tais que permitam o brincar livre e espontâneo da criança.

Este brincar acontece a partir de um enquadre, o qual Aucouturier (2007) chamou ‘dispositivo da sessão’. A sessão de Prática Psicomotora Educativa e Preventiva acontece então em cinco momentos: ritual de entrada, expressividade motora livre, asseguramento profundo pela linguagem, expressividade plástica e gráfica e ritual de saída.

O autor aponta ainda a arrumação do material como uma sequência do ritual de saída, o que pode também ser entendido como um sexto momento. Nesse alinhamento a prática psicomotora Aucouturier (PPA), considera três objetivos: o favorecimento da função simbólica, o favorecimento dos processos de asseguramento e de descentração.

A implantação da PPA considera um ambiente educativo, voltado ao desenvolvimento da criança e intenta, no decorrer das práticas favorecer a capacidade de linguagem e comunicação da criança (função simbólica), bem como proporcionar uma saída gradativa do egocentrismo em favor do pertencimento colaborativo com o grupo social/escolar (descentração).

Considera ainda o aprimoramento da capacidade de perceber-se, localizar seu corpo, suas necessidades, cuidar de si e do outro, permitindo assegurar-se no atendimento parcial às próprias necessidades, que considera também o outro, com seu corpo em movimento e as necessidades deste também (asseguramento).

Salienta-se que a prática educativa psicomotora, a partir do Método Aucouturier, viabiliza e promove um desenvolvimento psicomotor ajustado, bem como oportuniza a construção das expressões de gênero na infância sob uma lógica menos heteronormativa e binária, colaborando para uma formação de crianças mais capazes de construir uma sociedade mais igualitária e democrática.

Ampliando a discussão para além dos parâmetros do desenvolvimento, apresenta-se o campo construcionista social como um compêndio teórico que pretende questionar a perspectiva estática e estável proposta pelo desenvolvimento. Considerando que o campo psicomotor se constitui por amplos campos de saber, entende-se como oportuno ampliar esse debate destacando, para além do favorecimento ao desenvolvimento psicomotor proporcionado pela educação psicomotora, uma análise mais crítica e abrangente, viabilizada pelo Construcionismo Social. A ideia é a de propor um diálogo que possa sustentar uma intervenção mais dinâmica, na qual a oficina psicomotora, embora considere pontos de estabilidade frente ao desenvolvimento humano, possa também favorecer análises mais amplas e críticas, que questionem os parâmetros desenvolvimentistas frente à potência subjetiva, transformadora e inventiva da criança.

A Psicologia do desenvolvimento traz elementos que permitem compreender a identidade de gênero como uma construção feita ao longo da vida, mas que tende a um ponto de estabilidade. A construção da identidade de gênero é realizada sob o substrato biológico do sexo e no contexto das relações sociais tanto familiares quanto escolares ou sociais mais amplas. Nesse sentido a Psicologia do desenvolvimento aponta para a identidade de gênero como decorrente de processos de aprendizagem, um processo que se desenvolve na lógica binária, linear e contrastiva entre o masculino e o feminino, em direção à heteronormatividade. Se, no campo da Psicologia do desenvolvimento, o termo “identidade de gênero” aparece com destaque, os construcionistas que se dedicam aos estudos de gênero cunharam o termo “construção das expressões de gênero”.

No ínterim desse diálogo salienta-se a educação psicomotora como um campo interventivo favorecedor das relações inventivas que, no encontro com o outro, co-constrói fazeres democráticos, igualitários e potentes em relação ao jogo social. A premissa do desenvolvimento humano localiza esse fazer, o campo construcionista social problematiza e questiona os pontos de estabilidade outrora sustentados pelo paradigma desenvolvimentista, intentando apontar uma dinâmica sempre do movimento, de um contínuo fazer e afazer.

MATERIAL E MÉTODO

O projeto Brincar
O Projeto “O brincar e o desenvolvimento Psicomotor da criança: intervenções psicossociais na infância” foi um projeto pensado e estruturado a partir da parceria entre a PUC Minas e a secretaria de educação da cidade de Belo Horizonte. O referido projeto iniciou-se em 2015, a partir de uma análise, juntamente ao município, da realidade de desenvolvimento social e escolar das crianças.

O objetivo do mesmo foi declarado como “ promover ações lúdicas através de oficinas de modo a contemplar o desenvolvimento psicomotor e social da criança de 3 a 10 anos, bem como favorecer a formação continuada dos educadores .”

O projeto aconteceu de 2015 a 2018 no âmbito da extensão universitária, sendo acrescido de objetivos pedagógicos e sociais, teve metas de formação de educadores e também ações de formação acadêmica dos graduandos em psicologia. Quatro unidades escolares (creche/escola) passaram a ser beneficiadas com as ações do projeto. Todas as escolas localizavam-se em região de vulnerabilidade social e foram indicadas pela Prefeitura de Belo Horizonte, no âmbito da parceria implantada, a receberem as ações do projeto “Brincar”.

A Execução do Projeto: as oficinas psicomotoras á luz do Metodo Aucouturier
O método proposto por Aucouturier (2007) implica em promover a expressividade motora livre através de materiais pouco estruturados que viabilizem a criatividade das crianças, como blocos de espuma, tecidos e materiais adaptáveis como caixas de papelão, cordas, espaguetes de piscina, dentre outros. Para o autor, ao viabilizar que a criança atue sobre o objeto colocando-o à serviço da própria criação, é possível expressar a cena da própria história, construindo outros desfechos e encaminhamentos. A partir da relação com o grupo e com o mediador (profissional que media a prática) é possível à criança, favorecer a função simbólica, o asseguramento de si e o respeito ao outro, bem como o processo de descentração, que significa o deslocamento gradativo do egocentrismo e o favorecimento das atividades de socialização e relação.

A ação educativa consiste em ajudar a criança a desenvolver sua pulsionalidade motora, que não é nem boa nem má, até o prazer da nuance da ação, em direção a objetivos socializadores. Esse domínio, cada vez mais apurado, a leva sempre para uma mudança de comportamento e de atitude em relação a si própria e aos outros, que não a remete mais a uma pulsionalidade cega, mas sim a uma grande atenção para com o mundo, até o prazer de ser responsável por sua ação. (AUCOUTURIER, 2007, p. 170)

A partir dessas premissas buscou-se viabilizar, através das ações do projeto Brincar, que as crianças, no ambiente escolar, pudessem expressar-se através do jogo psicomotor. Este, entendido aqui como o brincar espontâneo que favorece a capacidade da criança perceber seu próprio corpo e seus movimentos, pôde também promover a experimentação de meninos e meninas de toda a potencialidade criativa do brincar.

As oficinas eram desenvolvidas semanalmente nas escolas atendidas buscando, a partir da estrutura do método Aucouturier, atuar do prazer de agir ao prazer de pensar. No primeiro momento da oficina era feito o acolhimento das crianças e a sistematização dos combinados (ritual de entrada), após, acontecia o momento da expressividade motora livre e as crianças podiam brincar a partir dos materiais pouco estruturados disponibilizados.

A história por vezes era usada como estratégia de modulação tônica, isto é, como atividade voltada para auxiliar no ajuste corporal da criança do prazer de agir para o prazer de pensar. Na sequência, o grupo era convidado à expressividade gráfica ou plástica, podendo se dedicar à construção a partir de algum material, podia também desenhar ou modelar, dependendo da proposta sugerida e organizada pelos mediadores da oficina.

Ao final, retomava-se a roda para as atividades de encerramento e avaliação do encontro. Os mediadores foram os alunos do curso de psicologia que atuavam como extensionistas e a equipe pedagógica da escola.

No decorrer das oficinas a premissa do brincar espontâneo e as experimentações em relação ao corpo e o movimento se mantinha, respeitando-se à estrutura apresentada. No momento da roda inicial o diálogo, o acolhimento, o abraço, a contenção da impulsividade se mostravam, pois as crianças precisaram desenvolver estratégias de adequação para poderem aguardar a vez de falar, esperar na insatisfação até que lhes fosse permitido pegar os objetos para brincar, precisaram desenvolver mecanismos para serem ouvidas.

Na expressividade motora livre puderam se expressar contando suas narrativas em relação à família, à aprendizagem escolar, bem como sobre suas escolhas e experimentações frente à construção da expressão de gênero. Podiam, no brincar espontâneo, fantasiarem-se do que desejassem, escolher todos os tipos de brincadeira, de faz de conta, sem se aterem aos estereótipos do ‘menino brinca de carrinho e menina brinca de boneca’.

Meninos e meninas puderam, ao longo dos momentos criativos e espontâneos, escolherem o modo de brincar. Na expressividade gráfica esta dinâmica se repetia, contudo, mediada pelos parâmetros da construção, do desenho ou da modelagem. E, por fim, no ritual de saída, as crianças falavam das percepções da sessão, o que proporcionava ao mediador, um feedback e uma avaliação do encontro. Nesta medida lhe era possível pontuar e intervir destacando alguma reflexão junto ao grupo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

É nessa tessitura que as cenas do brincar passaram a serem vistas não apenas como voltadas ao desenvolvimento das crianças no propósito do Método Aucouturier, passaram a ser também problematizadas frente ao campo dos estudos de gênero, visto estarmos em loco, na cena lúdica, a trabalhar com as significações do ‘ser menino’ e do ‘ser menina’ na escola e em nossa sociedade.

Foi a partir das ações do projeto que foi nos possível olhar e problematizar a ação do brincar das crianças para além da expressão dos conteúdos psíquicos e cognitivos próprios, pudemos, a partir de situações vividas no projeto, problematizar questões muito mais amplas, como a construção da expressão de gênero nas crianças.

Pautar o processo de socialização de gênero das crianças segundo os modos de ser estereotipados de meninos e meninas brincarem, pode colaborar com um desenvolvimento precário de algumas habilidades psicossociais, tais como dificuldades para a expressão das emoções nos meninos, que são incentivados a se mostrarem sempre “duros” e não evidenciarem suas emoções, sendo proibidos de brincar de cuidar de bonecas, por exemplo, ou de brincadeiras que remetam à prática do cuidado. (FRÓIS, 2018. p. 63)

Cenas como “brincar de salão”, “brincar de super-herói”, puderam ser problematizadas com as crianças e as educadoras, dando luz a um debate sobre o processo de construção de gênero na infância. A partir das sessões de prática psicomotora educativa e através de conversas e reuniões com as educadoras, pontos de análise sobre como as crianças aprendem a se intitular meninos e meninas, bem como, qual o lugar social do ‘ser menino’ e do ‘ser menina’, puderam ser considerados.

Considerando o entrelaçamento de saberes apresentados pelo paradigma do desenvolvimento e a partir da análise crítica proposta pelo Construcionismo Social, intentou-se, nesse artigo, perfazer um exercício reflexivo e crítico para subsidiar uma reflexão sobre o papel da educação psicomotora e do jogo psicomotor para a facilitação do desenvolvimento humano e para a construção das expressões de gênero menos binárias e heteronormativas.

Considerando as premissas epistemológicas dos distintos campos teóricos revisitados, não foi o intuito do diálogo propor uma sobreposição de um conjunto teórico sobre o outro. A intenção foi mesmo a de apresentar a diversidade dos pensares que coexistem na cena do fazer psicomotor. Tamanha é a riqueza, bem como a complexidade, traçar e percorrer um caminho dinâmico para além na normatividade posta pelos modelos teóricos.

Ao reconhecermos os pontos de contato e os de dissonância entre os saberes teóricos podemos olhar a realidade a partir de visões diferentes que conversam em alguns pontos e não em outros. Busca-se assim, com mais propriedade, entender a complexidade da realidade da criança com seu corpo em movimento, seu processo de dizer de si e da sua construção de gênero a partir das relações mediadas pelo jogo psicomotor na escola.

Segundo Fróis (2018), a partir da teoria do Construcionismo Social foi possível problematizar e entender que a cena do brincar, rica em significados e potencialidades, proporciona um ambiente adequado para descortinar valores problematizando-os.

O posicionamento construcionista social refuta a ideia de que a realidade humana seja aprendida por uma mera transposição e repetição de valores ao longo das gerações. O construcionismo social defende que há uma coconstrução constante, de modo que as pessoas interpretam e subjetivam os valores transmitidos os transformando, não havendo assim um princípio estático de ensinamento a ser repassado e aprendido pelas pessoas sem que haja nenhuma postura ativa destas (FRÓIS, P, 37, 2018).

A facilitação do brincar promove o conhecimento das realidades sociais das quais a criança participa, bem como apresenta construções inusitadas e criativas para estas. A criança que é convidada a criar, a expressar-se espontaneamente, pode intentar desconstruir a repetição do estereótipo da brincadeira de ‘menino’ e da brincadeira ‘de menina’.

Logo, a partir da cena da brincadeira, pode-se construir outros atravessamentos e realidades para a construção da expressão de gênero nas crianças. Ao serem autorizadas a criar a partir do material transformável, meninos e meninas podem exercer o prazer de serem eles próprios, encamparem seus projetos, realizarem o manejamento das marcas de prazer e desprazer contidas da atualização da própria história dramatizada no brincar.

É na ação do brincar livre e espontâneo, proposto pela Prática Psicomotora Aucouturier, que se pode encampar uma proposta educativa voltada ao direito à igualdade, ao direito à expressar as particularidades e diferenças, podendo, cada criança, brincar do ‘que quiser’, aprendendo a cuidar de si e do outro. Ao compreender que as crianças constroem suas expressões de gênero também na cena do brincar na escola, faz-se importante a permanência de uma prática do brincar que possibilite à livre manifestação da criança, do gesto motor ao mental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos diálogos estabelecidos, fica evidenciado o papel importante da educação psicomotora e do jogo psicomotor espontâneo como propulsores do desenvolvimento da criança e do acesso à reflexão crítica no processo de construção da expressão de gênero na infância.

Ainda que, sendo referendados a partir de campos teóricos distintos: o paradigma desenvolvimentista e o campo construcionista social, fica claro que para pensar o corpo em movimento na sua complexidade, há de se valer de conversas entre teorias.

A ciência Psicomotora, na sua complexidade e riqueza, é exemplo disso, pois, é construída a partir da encruzilhada de saberes. Dada a complexidade do fenômeno humano que, estudado a partir do olhar para o corpo em movimento, faz-se pertinente a apreciação de amplos conjuntos teóricos para a análise dos fenômenos considerados neste estudo.

O jogo psicomotor, ao promover, a partir dos objetivos da Prática Psicomotora Aucouturier, a expressividade da criança, a troca relacional lúdica e criativa, desponta progressos em relação ao desenvolvimento infantil. Sobremaneira, ao promover espaço para um lugar inventivo e criativo, mostra-se campo para um entendimento de uma construção continuada, modificada e transformadora a cada encontro com o outro, premissa sustentada pelo campo do Construcionismo Social.

A Prática Psicomotora Aucouturier, encampou, nas entrelinhas dos objetivos descritos pela mesma, possibilidades de construção de uma realidade mais humanizada, igualitária, em favor do exercício pleno e democrático do ‘ser si mesmo’, exercer e construir as próprias potencialidades sem que a expressão de gênero ‘menino’ ou ‘menina’, fosse um determinante. Meninos e meninas puderam, ao brincar do que quiseram, dedicar-se à uma construção igualitária de direitos, deveres, de potencialidades criativas e habilidades formativas.

A partir das oficinas realizadas pelo projeto foi possível proporcionar, às crianças e às educadoras, um desenvolvimento psicomotor efetivo em suas bases sociais, psíquicas e físicas, atentando também às premissas sócio culturais e políticas que garantem a igualdade de direitos. A partir da análise sob o olhar Construcionista Social, foi possível descortinar a dinâmica co-construtiva presente no encontro relacional com o outro, o que questiona os pontos estáticos e de estabilidade conquistados frente ao desenvolvimento psicomotor.

Tal fato destaca a premissa do movimento, salientando que a cada momento há novos encontros e novas possibilidades que são postas quando se viabiliza o jogo psicomotor espontâneo e criativo. Nesta lógica do jogo psicomotor, a educação psicomotora estaria atuando de modo holístico na formação da criança, dando a ela condições de ser si mesma e de construir-se como ‘ser menino’ ou ‘ser menina’ a partir de amplas possibilidades experimentadas pelo fazer criativo e lúdico. Defender e priorizar o jogo psicomotor na escola implica, portanto, em resguardar a igualdade de direitos e o respeito às diferenças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUCOUTURIER, Bernard. O método Aucouturier: fantasmas de ação e prática psicomotora. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2007. 326 p.
FRÓIS, Érica Silva. A construção das expressões de gênero da criança no contexto da educação infantil: do corpo à palavra. Belo Horizonte, 2018. 161f. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
NOGUEIRA, Maria da Conceição. Contribuições do construcionismo social a uma nova psicologia do gênero. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 112, p. 137-153, mar. 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/n112/16105.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2016.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.

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