A Psicomotricidade no Trabalho Interdisciplinar – Autor: Eleonora Oliveira Filgueiras

AUTOR:

Eleonora Oliveira FilgueirasEleonora Oliveira Filgueiras;
Psicomotricista graduada pelo IBMR;
Sócia titular da ABP;
Especialista em Atenção Integral à saúde materno-infantil pela ME/UFRJ.
Contato: nora.psicomotricidade@gmai.com

  

  

A PSICOMOTRICIDADE NO TRABALHO INTERDISCIPLINAR COM A CRIANÇA PORTADORA DE SÍNDROME: POR UMA MUDANÇA DE OLHAR

Autora: Eleonora Oliveira Filgueiras

(...) a criança que não se sente bem igual as outras por alguma marca no seu corpo, na sua maneira de ser...
Ela lida com algo que dói muito: não é a diferença em si mesma, mas o ar de espanto que a criança percebe nos olhos dos outros. (...) o que muda não é a diferença. São os olhos.
RUBEM ALVES

Introdução:

A palavra síndrome pode ser definida como um conjunto de sinais e sintomas. Entre os diversos tipos de síndromes existentes encontramos as síndromes genéticas e as síndromes neurológicas. Estes dois tipos de síndromes em geral configuram um quadro em que a criança se apresenta de uma forma totalmente diferente do esperado.

Isto ocorre porque as síndromes neurológicas e as genéticas podem trazer consigo marcas corporais visíveis e características comportamentais passíveis de causar estranhamento, podendo dificultar as relações sócio-afetivas e familiares das crianças que as portam.

Sendo assim, estas síndromes são capazes de acarretar prejuízo no desenvolvimento neuropsicomotor de duas formas diferentes, porém interligadas:

  • a) uma direta, pelos comprometimentos de origem orgânica que o quadro pode apresentar, como, por exemplo, um déficit cognitivo e/ou motor, característico de algumas síndromes;
  • b) outra indireta, secundária, conseqüência de um prejuízo das relações familiares e sociais da criança, comprometendo a formação de sua Imagem Corporal e conseqüentemente do Esquema Corporal, atingindo, assim, todo o desenvolvimento ulterior.

A Imagem Corporal é dada nas primeiras relações parentais da criança de forma subjetiva e se (re)atualiza através do Esquema Corporal em diversas situações ao longo de sua vida. Entretanto, para que estas primeiras relações se estabeleçam de modo saudável, é necessário que, inicialmente, o vínculo pais-bebê tenha sido formado.

No caso da criança que nasce portadora de uma síndrome genética e/ou neurológica apresentando marcas corporais visíveis e/ou prognóstico de grandes limitações nas aquisições motoras e cognitivas, as expectativas dos pais em relação a este bebê são frustradas de forma avassaladora.

Este fato pode levar a uma falta de investimento dos pais nas potencialidades da criança, pois o vínculo pais-bebê corre o risco de ser afetado ou mesmo de ficar impossibilitado de ocorrer.

Para que isso não aconteça os pais precisam passar por um processo de luto pelas expectativas frustradas (que são vividas como perdas) para poderem abrir espaço para novas expectativas através das quais possam recuperar a capacidade de simbolizar sobre a criança, independente de suas limitações orgânicas ou marcas corporais.

Na busca de uma contextualização sobre os tipos de características corporais e comportamentais que podem aparecer nas síndromes genéticas e neurológicas, causando dificuldades na vida da criança, podemos apontar como exemplos:

  • a) alterações do tônus (hipotonia ou hipertonia), características que aparecem em diversas síndromes, causando atraso nas aquisições posturais e motoras e trazendo como conseqüência um empobrecimento das explorações ambientais que são essenciais para o desenvolvimento cognitivo;
  • b) atrasos de linguagem afetando diretamente a organização do pensamento e as interações sociais da criança;
  • c) dificuldades de inibição de comportamentos e reações socialmente inadequados;
  • d) dismorfismos faciais e corporais que podem causar estranhamento atraindo olhares de espanto, curiosidade ou pena, prejudicando a auto-estima da criança;
  • e) internações hospitalares repetidas e prolongadas que acarretam falta de vivência do corpo no espaço, interrupções na vida escolar e social e falta de estímulos adequados ao desenvolvimento.

A Importância do olhar do outro na formação da Imagem Corporal

A partir destas breves descrições, podemos refletir sobre os tipos de dificuldades enfrentadas por crianças portadoras de síndromes e por seus familiares, apontando para a necessidade de um olhar e cuidados diferenciados.

Nesse contexto, o papel do psicomotricista (seja na educação ou na clínica), com sua visão integradora do ser humano, vai muito além da estimulação em si; envolve a tarefa de mediar as relações da criança com o mundo a sua volta.

Para tanto é preciso “... construir o cenário e a cena onde o sensório-motor tenha um sentido possível e um percurso relacional dirigido a um outro.” (LEVIN, 2001; 73).

Ou seja, o psicomotricista precisa, antes de tudo, trabalhar sobre a Imagem Corporal desta criança, o que inclui um trabalho direto com seus pais ou cuidadores, oferecendo a estes um suporte para que possam ter condições de fornecer à criança um ambiente favorável ao seu desenvolvimento.

Além disso, o psicomotricista deve auxiliar os pais na identificação dos potenciais da criança, mediando, assim, seu olhar sobre ela.

LEVIN deixa clara a importância do olhar do Outro para o desenvolvimento sensório-motor da criança, quando nos fala: “... num primeiro momento os aspectos motor e sensitivo dependem do campo do Outro. Poderíamos afirmar que estão no Outro (dado o estado de indiferenciação da criança ao nascer).

Depois, numa segunda fase, a criança conquista uma imagem própria, com base na qual se configuram sua sensorialidade e sua motricidade. Sem imagem do corpo o ‘sensório-motor’ vai permanecer holofraseado, solidificado, sem ponte, ficará sem sentido, sem cena, sem representação, ou seja, no real onde não há ressignificação” (op.p.cit)

Quando a criança é portadora de uma síndrome que causa marcas corporais e atrasos no desenvolvimento, afetando suas interações com os pais, estes podem ter muita dificuldade de uma representação sobre o corpo e as produções corporais (psicomotoras) da criança.

É um fato que compromete diretamente a formação da Imagem Corporal pois, conforme afirma LEVIN: “Não há imagem que suporte o impossível de representar.” (op.cit.p.57).

No início da vida do bebê é o adulto cuidador que dá significados e faz representações sobre as ações, reações e produções dele; isto permite que, no futuro, a criança seja, ela própria, capaz de representar.

Considerando a constituição da Imagem Corporal como base sobre a qual se constrói todo o desenvolvimento, e que esta Imagem se fundamenta nas primeiras trocas afetivas da criança com os pais, é importante que se façam algumas observações sobre a questão do vínculo.

De acordo com WINNICOTT (1999), se tudo transcorre normalmente durante os nove meses em que o bebê se prepara para nascer, a mãe, por sua vez, também passa por um processo no qual ela vai, naturalmente, se envolvendo com o novo ser que está gerando.

Este processo faz com que, quando nasce o bebê, esta mãe esteja profundamente identificada e em tal sintonia com ele que “...entra em uma fase” em que “...ela é o bebê e o bebê é ela...” (op. cit., p. 4).

Desta forma, a mãe é capaz de um conhecimento sobre o seu bebê, que abrange não apenas a percepção das necessidades mais óbvias, como de alimento ou sono, mas uma sensibilidade para necessidades muito sutis como, por exemplo, as de “...ser mudado de posição...”, pego no colo, ou “...deixado a sós...” (op. cit., p.5).

São experiências de sintonia e contato entre mãe e bebê que promovem as bases para que este possa desenvolver uma percepção de si mesmo. As repetições destas experiências ajudarão a “...assentar os fundamentos da capacidade que o bebê tem de sentir-se real.

Com esta capacidade o bebê (...) pode continuar a desenvolver os processos de maturação que ele ou ela herdaram” (op. p. cit).

O autor chama de integração os momentos de congregação das sensações e ações que compõem nosso conhecimento sobre um determinado bebê “de tal forma que há momentos de integração em que o bebê é uma unidade, embora, naturalmente, uma unidade muitíssimo dependente” (op. cit., p.9).

O relacionamento entre a mãe e o bebê, profundamente identificados um com o outro, é o início de um sentimento de ser, de existir por parte do bebê, isto porque, antes de tudo, o ser humano é juntamente com um outro, de uma maneira ainda indiferenciada.

Esta integração do bebê, aproxima-se do conceito de Imagem Corporal, largamente utilizado pela Psicomotricidade. LAMEGO & MACIEL (2002) apóiam-se na teoria de DOLTO (1984), para falarem sobre o tema da Imagem e do Esquema Corporal.

Assim, eles afirmam que a Imagem Corporal é algo subjetivo, próprio de cada um e estruturada a partir da comunicação com a criança e “...da memória inconsciente de todo o vivido relacional da pessoa, atualizando-se a partir disso, ao longo da vida”. (p.88).

Já o Esquema Corporal se estrutura na experiência e aprendizagem, trata-se de algo mais comum entre os indivíduos, é passível de ser observado, tocado e trabalhado de uma maneira direta. Ao mesmo tempo em que tem como pano de fundo a Imagem Corporal, funciona como intérprete desta, “na medida em que permite a objetivação daquilo que é aprendido como subjetivo” (op. p. cit.).

Nesse sentido, o conceito de Esquema Corporal estaria mais próximo daquilo a que WINNICOTT (1999) se refere como processos de maturação herdados, que necessitam, para se desenvolver, que a criança tenha a sensação de integração, fornecida, em primeiro lugar, pelo ambiente proporcionado pelo adulto.

Trata-se de uma relação de grande envolvimento em que a mãe confere significado às produções corporais do bebê, através do diálogo estabelecido naquilo que atravessa os cuidados maternos ou, nas palavras de LEVIN (2001) uma “modalidade de relação tão próxima, tão corporal e ao mesmo tempo tão desarmônica, marca tanto o corpo do bebê como o da mãe”. (p.62)

Depois de algumas semanas, o estado da mãe, de envolvimento e compreensão das necessidades de seu bebê, começa a falhar de forma gradual e esta falha é necessária ao desenvolvimento da criança porque, depois de uma certa idade, o bebê já “dispõe dos mecanismos que lhe permitem conviver com as frustrações e as dificuldades do meio ambiente” (WINNICOTT, 1999; 6).

É importante ressaltar que este precisa ser um processo que aconteça de forma natural, em sintonia com as capacidades que o bebê vai adquirindo para lidar com as falhas.

Algumas vezes ocorrem situações específicas em que algo falha de uma forma muito perturbadora e em um momento em que o bebê não tem condições de suportar, o que pode levar a um rompimento.“Em outras palavras, há um grande número de razões pelas quais algumas crianças são atingidas antes que sejam capazes de evitar que sua personalidade seja ferida ou lesada por algum acontecimento” (op. p. cit.).

Quando um casal espera um bebê, a despeito de quaisquer temores sobre sua saúde e integridade física, os pais projetam psiquicamente uma criança, para eles, ideal. Ao nascimento, mesmo que tudo corra bem, há um período de ajuste em que estes pais adaptam suas expectativas ao bebê real.

Mas, diante de alguma situação mais grave ou inesperada o ajuste do ‘bebê idealizado’ para o bebê real pode se tornar extremamente dificultado para os pais.

Muitas vezes, quando a criança porta uma síndrome que traz consigo marcas físicas e alterações comportamentais, ela é atravessada pelo sintoma, ficando colada a este, bem como ao diagnóstico.

Nas palavras de AUCOUTURIER, DARRAULT e EMPINET (1986): “(...) o termo diagnóstico (embora seja difícil substituí-lo por outro) coloca-nos justamente alguns problemas, na medida em que, muitas vezes, significa um julgamento acabado, estático, petrificado, elaborado de maneira distanciada, objetivante.” (p.208)

Desta forma a criança passa a ocupar o lugar de objeto de cuidados, ficando reduzida ao sintoma/diagnóstico, perdendo-se de vista o Sujeito. Muitas vezes a criança é até mesmo referida pelo nome da Síndrome que porta em vez de o ser pelo seu próprio nome.

Estes fatos podem acontecer com tal força que os adultos, seus cuidadores, não conseguem vê-la simplesmente como criança para além do sintoma e/ou diagnóstico. Quando isso ocorre, engessa-se a possibilidade de uma simbolização e conseqüentemente a imagem do Sujeito fica aprisionada ao diagnóstico que a síndrome traz consigo.

As necessidades de cuidados especiais e estimulações específicas reforçam ainda mais a objetivação da criança, interferindo significativamente na sustentação da imagem do Sujeito.

LEVIN (2001) nos descreve de maneira bastante clara esta situação, afirmando: “Nós, que trabalhamos com crianças que sofrem de algum problema neurológico ou genético, deparamo-nos no dia-a-dia com a crueza de uma realidade paradoxal.

Por um lado, os avanços tecnológicos e científicos nos permitem descobrir e definir novos diagnósticos e tratamentos específicos (...), por outro lado, esse mesmo desenvolvimento (...) esvazia e anula a existência do sujeito, tornando-a anônima, em prol da busca incansável de uma cura eficaz para o problema orgânico.” (p.179)

Isto aponta para a necessidade de uma transformação na visão atual, altamente especializada e compartimentada das áreas de saúde, no sentido de evitar que estas reforcem ainda mais a dificuldade de um olhar integrador sobre a criança.

As interferências e atravessamentos que uma síndrome pode causar na relação pais-bebê são capazes de levar a, desde uma total rejeição, até uma superproteção da criança, que na realidade são duas faces de uma situação de descrédito em seu potencial.

Não basta ao psicomotricista ver a criança por trás da síndrome, é preciso que ele assuma um papel de mediador para que pais, escola e outros profissionais que lidam com a criança possam se apropriar desse olhar.

É necessário que o psicomotricista disponibilize o ambiente a si mesmo na relação, em busca de produzir novos sentidos e significados para as diferenças.

Esta mudança no olhar do outro pode levar a criança a uma ressignificação de suas dificuldades e diferenças, possibilitando a ela uma outra forma de estar no mundo, mais integrada, criativa e – por que não dizer - mais feliz.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUCOUTURIER, B, DARRAULT, I & EMPINET, J. L. A Prática Psicomotora: reeducação e terapia. Artes Médicas: Porto Alegre,1986.
ALVES, R. A. Estórias para Pequenos e Grandes. Paulinas: São Paulo,1994.
HUIZINGA, J. Homo Ludens. Perspectiva: São Paulo,1980.
LAMEGO, D. C. & MACIEL M. A. “Psicomotricidade e Interdisciplinaridade: uma experiência em saúde pública” In FERREIRA, C. A., THOMPSON, R. & MOUSINHO (Orgs.).
Psicomotricidade Clínica. Lovise: São Paulo, 2002.
“Bebês Hospitalizados: uma reflexão sobre o corpo o espaço e o tempo” In FERREIRA, C. A. & THOMPSON, R. (Orgs.). Imagem e Esquema Corporal. Lovise: São Paulo, 2002.
LEVIN, E. A Função do Filho: espelhos e Labirintos da Infância. Vozes: Petrópolis, 2001.
A Infância em cena: constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor. Vozes: Petrópolis, 1987.
SANTA ROZA, E. & REIS, E. S.Da Análise da Infância ao Infantil da Análise. Relume-Damará: Rio de Janeiro, 1997.
SANTA ROZA, E. Quando Brincar é Dizer: a experiência psicanalítica na infância. Contra Capa: Rio de Janeiro, 1999.
WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Imago: Rio de Janeiro,1971.
Os Bebês e suas Mães. 2. ed. Martins Fontes: São Paulo, 1999.

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Artigo revisado e atualizado do original publicado em FEREIRA, Carlos Alberto de Matos & RAMOS, Maria Inês Barbosa. Psicomotricidade: Educação Especial e Inclusão Social. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2007.
WAK Editora, 2007

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