Autismo, Psicomotricidade e Classificação Internacional de Funcionalidade: Diálogos Para A Intervenção

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE I CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOMOTRICIDADE XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOMOTRICIDADE

AUTISMO, PSICOMOTRICIDADE E CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE FUNCIONALIDADE: DIÁLOGOS PARA A INTERVENÇÃO

AUTORES:


Ana Alexia de Camargo
Discente do curso de Educação Física (UPPR)

Anselmo Franco da Silva
Educador Físico e Especialista em Psicomotricidade

Carla Regina de Camargo
Fisioterapeuta, Psicomotricista e Mestre em Educação carlaflachfisio@gmail.com

Fernanda da Conceição Zanin
Mestrado e graduação em Psicologia (UFPR) e Psicomotricista em formação. ferczanin@gmail.com

Tânia Regina Rodrigues
Fisioterapeuta e Psicomotricista taniar.6@hotmail.com

Daniel Vieira da Silva
Doutor em Educação - titular Abp 19/93 - diretor da Movimento: Centro de Estudos da Atividade Humana danielsilvacwb@gmail.com

Resumo


Evidências empíricas, oficiais e acadêmicas (OMAIRI et al., 2013; OPAS; OMS, 2017), apontam para um vertiginoso aumento de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Tal fato coloca em pauta a urgência de estudos que subsidiem os diagnósticos, as intervenções terapêuticas e os acompanhamentos dos casos, bem como, o esclarecimento da comunidade em geral, a respeito deste fenômeno.

Utilizando-nos da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) objetivamos analisar as contribuições da abordagem funcional psicomotora como mediadora da relação com a criança autista. Este estudo é resultado das atividades de um grupo de pesquisa, o qual, a partir de uma abordagem investigativa expo-fato, de tipo quali-quanti, utilizou filmagens, anamneses e relatórios evolutivos de 81 pacientes dignosticados com TEA, disponibilizados por uma clínica de psicomotricidade e fisioterapia da região sul do Brasil.

Pautando-nos no referencial teórico oferecido pela Psicologia Dinâmica (GARCIA, 1995), dentre outros, bem como nos domínios oferecidos pela CIF, podemos auferir que o uso de estratégias psicomotoras funcionais com tais pacientes propiciou, de modo geral, o nivelamento da angústia e a regulação das ansiedades dos mesmos, evidenciando melhoras nas categorias atividade e participação dos sujeitos abordados pela intervenção.

Palavras-Chaves: Transtornos globais do desenvolvimento; Desenvolvimento Psicomotor; CIF.

1. INTRODUÇÃO


Este estudo é resultado das atividades de um grupo de pesquisa que, utilizando-se da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), objetivou analisar as contribuições da abordagem funcional psicomotora, como mediadora da relação com a criança autista.

No DSM-V (2013), o transtorno do espectro autista - TEA é caracterizado por prejuízos em três áreas do desenvolvimento: a) habilidades de interação social; b) habilidades de comunicação; c) presença de comportamentos estereotipados e/ ou interesses restritos. Consideramos a criança com TEA um sujeito que possui dificuldades na relação e interação com os outros, consigo mesmo e com o mundo que a cerca, bem como, dificuldade na inclusão no universo da linguagem e na socialização.

Estudos evidenciam que, atualmente, o número de crianças incluídas no âmbito do espectro autista tem aumentado consideravelmente. Segundo Omairi et al. (2013) a prevalência era de 1 caso para cada 88 crianças em 2012 e 1 para cada 50 crianças em 2013, nos EUA.

No Brasil não temos dados quantificados, porém, empiricamente, podemos constatar nas clínicas de reabilitação, históricos de significativo aumento de demanda. Com o crescente número de casos, entendemos que há uma necessidade de estudos que avaliem a pertinência das intervenções para este público em questão.

Notamos, historicamente, sobretudo a partir dos anos 90, uma tendência segregativa em relação às abordagens funcionais (tanto na área psicomotora como na área da educação física) e um trato de senso comum em relação a elas. Na contramão do movimento hegemônico, que se afasta das práticas de cunho funcional para aderir à perspectivas de ordem relacional, levantamos reflexões sobre as contribuições desta primeira abordagem, para a mediação da relação.

Sendo assim, uma vez apontado o fato de que no campo psicomotor há muitas linhas de atuação, com diferentes propostas de abordagem, neste estudo, optamos por destacar a atividade psicomotora funcional, como elemento mediador das relações na intervenção de pacientes com TEA.

Para levar a cabo tais proposições utilizaremos a obra de Tizon Garcia (1995), autor que, dentre outros, se pauta no caráter psicodinâmico da psique humana.
Para a sistematização dos dados utilizamos a CIF, classificação desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde- OMS, que tem como objetivo geral proporcionar uma linguagem unificada e padronizada, bem como uma estrutura de trabalho para a descrição da saúde e de estados a ela relacionados.

Neste sentido agrupa, sistematicamente, diferentes domínios de uma pessoa com determinada condição e permite a comunicação padronizada de diversas disciplinas e ciências no âmbito internacional. (OMS, 2013)

2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.1 Autismo


O autismo é considerado uma disfunção global do desenvolvimento, na qual encontram-se afetadas as capacidades de comunicação, de socialização e de comportamento do indivíduo. O diagnóstico é clínico, baseado nos critérios do DSM-V (2013), com o termo transtorno do espectro autista (TEA). Os exames de neuroimagem e neurofetologia e os estudos genéticos contribuem para o melhor entendimento da neurobiologia do autismo.

Para Rutter e Shopler (1992), o autismo não é uma doença única, mas sim um distúrbio do desenvolvimento complexo, definido de um ponto de vista comportamental, com etiologias múltiplas e graus variados de severidade. Considerado a terceira mais comum desordem do desenvolvimento (GADIA; TUCHMAN; ROTTA, 2004), o autismo, atualmente, é classificado em três níveis de gravidade: nível 1 - necessita de pouco apoio; nível 2 - demanda apoio substancial; nível 3 – requer apoio muito substancial.

As dificuldades na comunicação ocorrem tanto na habilidade verbal, quanto na não-verbal. Na ausência de um marcador biológico, o diagnóstico de autismo e a delimitação de seus limites permanecem uma decisão clínica um tanto subjetiva.

Para Omairi et al. (2013), o aumento de incidência atual, conforme evidenciado na introdução deste trabalho, deve-se não somente ao número real de casos, mas também, à melhora nos métodos de triagem e diagnóstico precoce.

Para Ajuriaguerra (1973), o Autismo Infantil se enquadra dentro das psicoses infantis, caracterizadas como sendo um transtorno da personalidade, dependente de uma desordem da organização do Eu e da relação da criança com o mundo circundante.

Nas crianças com TEA, além das características citadas, visualiza-se também, uma inabilidade em relacionar-se com o outro. Desde tenra idade, os jogos de faz de conta e de imitação social, habituais nas crianças com desenvolvimento normal, são falhos ou inexistentes.

Quase sem exceção, os autistas apresentam atraso ou ausência no desenvolvimento da linguagem verbal, que não é compensado pelo uso da gestualidade ou outras formas de comunicação. Outro aspecto a ser evidenciado, refere-se ao fato das pessoas autistas apresentarem, associado, Distúrbio de Integração Sensorial (DIS), uma vez que seus sentidos podem ser hipo ou hiperdesenvolvidos (MACIEL, 2009).

2.2 Psicomotricidade


Para a Associação Brasileira de Psicomotricidade - ABP, psicomotricidade “é um termo empregado para uma concepção de movimento organizado e integrado, em função das experiências vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua linguagem e sua socialização.”

Jean-Cloude Coste (1978, p.09-10) conceitua esta área do conhecimento, da seguinte forma:
[em] razão de seu próprio objeto de estudo, isto é, o indivíduo humano e suas relações com o corpo, a Psicomotricidade é uma ciência encruzilhada (...) que utiliza as aquisições de numerosas ciências constituídas (biologia, psicologia, psicanálise, sociologia, linguística). Em sua prática empenha-se em deslocar a problemática cartesiana e reformular as relações entre alma e corpo:

O homem é seu corpo e NÃO - O homem e seu corpo.
Por sua vez, o campo psicomotor transdisciplinar, o qual estuda e investiga as relações e as influências recíprocas e sistêmicas entre o psiquismo e a motricidade, baseado numa visão holística do ser humano, explicita que “a psicomotricidade encara de forma integrada as funções cognitivas, sócio-emocionais, simbólicas, psicolinguísticas e motoras, promovendo a capacidade de ser e agir num contexto psicossocial” (ABP, 2019).

Para Silva (2007), ao procurar um entendimento desta área numa perspectiva histórico-cultural, define a psicomotricidade como “[uma] área do conhecimento que tem por objeto o corpo e o movimento humano em suas relações sociais e de produção”.

Neste estudo, cabe esclarecer, tomamos a Psicomotricidade como campo do conhecimento e intervenção corporal, concebendo-a em duas grandes vertentes: relacional e funcional. A vertente relacional vale-se da atividade lúdica para oferecer um espaço expressivo no sentido de facilitar a explicitação de conteúdos emocionais e afetivos, contribuindo para compreensão e ressignificação dos mesmos.

Por outro lado, o enfoque funcional, segundo Mastracusa e Franch (2016), utiliza-se da atividade corporal estruturada e da ludicidade, para estimular o desenvolvimento das funções e habilidades motoras básicas.

2.3 Bases da constituição do vínculo, ansiedades e processos de nivelamento


Todo ser humano nasce imerso em uma determinada estrutura social, com seus condicionantes biológicos, psicológicos, sociológicos. São exatamente essas vivências de relação com o meio que configuram a experiência interiorizada e que permitem a constituição da realidade interna do sujeito (GARCIA, 1995).

No desenvolvimento infantil é necessário, portanto, levar em conta todo o contexto no qual o sujeito está inserido, para que, a partir destes determinantes, apontamentos e compreensões sejam elaboradas.

Deste modo, quando observamos o processo de desenvolvimento de uma criança, notamos a complexa e relevante importância de figuras de mediação entre o mundo externo que o permeia e seu mundo interno. Dito de outro modo, há uma atribuição relevante à relação com as figuras parentais ou seus representantes simbólicos, uma vez que são eles os principais mediadores do processo de desenvolvimento de uma criança. Um mediador, seja ele, as figuras parentais ou os terapeutas, estrutura e organiza os estímulos recebidos do meio para a criança.

Para Freud (1996, [1923]), no decorrer do desenvolvimento do sujeito, sobretudo evidenciados nos primórdios de sua constituição, a relação do ser humano é baseada na díade satisfação-insatisfação, prazer-desprazer das pulsões. Pulsões essas sentidas em seu próprio corpo e, muitas vezes, direcionadas a um objeto externo. Em seus primeiros anos de vida, um bebê não faz distinção entre seu próprio corpo e o do outro, para esses primeiros momentos, a criança encontra-se alienada ao outro, fusionada ao outro.

Tal alienação, e uma posterior separação, faz-se necessária para que o sujeito seja constituído. Como comentado anteriormente, as primeiras relações experienciadas pelos sujeitos são vividas através dos mediadores sociais, os quais, na maior das vezes estão representados nas figuras maternas e paternas desse bebê. São esses, também, os primeiros objetos de amor de uma criança.

Conforme aponta Garcia (1995), é através dessas relações que a criança inicia o que foi nomeado como fantasias básicas de confiança e desconfiança. As fantasias se formam por meio das relações estabelecidas, na medida em que as mesmas, produzem satisfação ou não satisfação das necessidades, demandas e desejos das crianças.

Tais vivências e fantasias acabam por exercer influências de modo contínuo durante toda a vida, nas condutas e nas representações mentais do sujeito. Uma criança com cuidados inadequados, por exemplo, a cada nova situação de abandono, revive intensamente os abandonos primordiais, revelando-os, sobretudo através da ansiedade.

Durante o processo de desenvolvimento, entre experiências de prazer e desprazer, o sujeito passa a construir o que Freud (1996, [1926]) chamava de Mecanismos de defesa, dentre eles, a ansiedade. Freud (apud GRACIA, 1995) aponta que a ansiedade revela-se quando a libido não pode ser descarregada, ou seja, acaba por não ter um espaço de circulação e, por tanto, o corpo não vivencia situações de carga e descarga tônica para se reorganizar.

Além disso, Garcia (1995) acrescenta que a ansiedade surge quando o sujeito nota a possibilidade de um vínculo se romper. Deste modo, a ansiedade aparece como uma resposta pré-programada, uma proteção do sujeito para não afastar-se de seu objeto de amor. Para o autor, orientando-se por uma perspectiva kleiniana, a ansiedade divide-se entre ansiedade confusional, ansiedade persecutória e ansiedade depressiva.

A confusional seria a mais primitiva, a qual é despertada diante da possibilidade (real ou imaginária) do ser aniquilado. Enquanto a ansiedade persecutória é vista quando, diante de uma situação compreendida como ataque externo, o sujeito re-age e interpela tal ansiedade através da perseguição. E, por fim, a ansiedade depressiva é apontada pelo autor como sendo a mais elaborada, onde surge ambivalência, reconhecimento e elaboração de que o perigo, na verdade, está dentro do nosso mundo interno.

Diante da manifestação dessas ansiedades, há algumas condutas e intervenções que podem nivelá-la para diminui-las e reorganizar o sujeito. As ansiedades, quando não niveladas e sem acolhimento, podem despertar manifestações perturbadoras ao indivíduo e ao outro. No que diz respeito ao presente estudo, consideramos que as crianças autistas se encontram na ansiedade confusional, uma vez que suas manifestações se encaixam neste padrão.

É possível notar, por exemplo, o quão angustiante pode ser para um sujeito autista a sensação de aniquilamento despertada através da aproximação do outro em seu espaço. Neste sentido, por meio de uma intervenção psicomotora, visamos condutas que organizam e nivelam de maneira consistente e minimamente básica de cuidado como nomeação, ordem, rotina, satisfação das necessidades vitais e acolhimento.

3. MÉTODO


Trata-se de uma pesquisa documental, expo fato com abordagem quali-quanti. Em confronto com a bibliografia disponível, foi realizada uma análise de dados dos registros escritos, evoluções, vídeos e fotos, arquivados na clínica de fisioterapia Corpo e Atitude, na cidade de Curitiba, no período de 2012 a 2018 e, posteriormente, em 2019, os dados foram classificados de acordo com a CIF.
Para esta pesquisa foram selecionados os registros de pacientes diagnosticados com autismo, que realizaram atividade de psicomotricidade aquática, na clínica e período acima indicado. A título de curiosidade, cabe destacar que a queixa inicial das figuras parentais era por uma atividade que trouxesse independência no meio líquido. Tal pedido foi acolhido pelos psicomotricistas de modo a utilizá-lo como forma de estabelecer uma relação de confiança e adesão a intervenção.

As atividades psicomotoras, neste caso, consistiam em jogos que exploravam as atividades funcionais, como forma de mediar a relação com a criança autista. Na abordagem qualitativa são analisadas as evoluções nos aspectos relacionais a partir desta intervenção.

Os aspectos qualitativos analisados nesta pesquisa foram: nivelação de angústia e exploração da relação com o espaço, com o outro, com os objetos e consigo mesmo, tendo como base a pauta de avaliação relacional, sistematizada por Mastrascusa e Franch (2016).

Para estes autores: a) na relação com o espaço observa-se como a criança ocupa, domina e se desloca no espaço; b) na relação com o outro se observa como a criança se comunica, se expressa com o outro, os tipos de relação, as modalidades e a participação; c) na relação com os objetos observa-se o uso que a criança faz dos objetos disponíveis na sessão; d) na relação consigo mesmo, observamos como a criança se adapta à proposta, como evolui em relação às suas crises de ansiedade confusional.
Ao final os dados obtidos, foram sistematizados, a partir da Classificação Internacional de Funcionalidade – CIF.

3.1 Caracterização da amostra e desenvolvimento da pesquisa


Entre os anos de 2012 a 2018, foram atendidos 268 pacientes, na clínica de fisioterapia Corpo e Atitude. Destes, 81 (oitenta e uma) crianças diagnosticadas com TEA, passaram ou seguem passando, pela intervenção proposta. Cabe ressaltar que, deste total, apenas 5 (cinco) são meninas. A faixa etária circula entre 02 e 15 anos.

A proposta foi de um trabalho individual, em piscina pequena, ambiência que facilitou e facilita, a organização da criança. Os materiais utilizados foram bolas, argolas, cones, jogos de encaixe, letras, números, brinquedos que flutuavam e outros que afundavam, plataformas, macarrões e tapetes flutuadores.

Silva (2006) desenvolveu um quadro conceitual envolvendo os conceitos de espaço vital e espaço relacional, correlacionando-os às atitudes tônicas e manifestações emocionais das crianças, bem como com as ansiedades de fundamento kleiniano, já abordadas, e as atitudes niveladoras a serem adotadas pelo psicomotricista.

A partir das elaborações de Silva (2006), observou-se que os indivíduos com TEA, via de regra têm como elementos do seu quadro de manifestações corporais as seguintes expressões: choro; grito; agressividade; autoagressão; estereotipias; ecolalia; tensão muscular; agitação. Quanto às manifestações psíquicas, encontramos na população estudada, a prevalência de: medo; pânico/terror; isolamento; negação; aversão; impossibilidade de interação.

A partir da observância destas manifestações recorrentes, situamos as crianças com TEA, na ansiedade confusional.
Como elementos niveladores para tal ansiedade, Garcia (1995) explicita as seguintes condutas: orientação; mediação; ordenação; estruturação e contenção.

Pautados nesta plêiade de injunções teórico-metodológicas, definiu-se como elementos de intervenção do psicomotricista, as seguintes atitudes:

  • organização tônica do psicomotricista de acordo com a demanda tônica da criança;
  • clareza na comunicação;
  • acolhimento e aceitação das manifestações corporais e afetivas da criança;
  • problematização e nomeação de tais manifestações;
  • respeito aos limites espaciais explicitados pela criança;
  • promoção de um senso de segurança em situações onde ela não domina;
  • ênfase na utilização dos objetos e proposições trazidas pela criança;
  • observação atenta às expressões e nuances tônicas da criança;
  • acolhimento das figuras parentais;
  • empréstimo do corpo para o deslocamento e movimento da criança.

4. APRESENTAÇÃO DOS DADOS


A partir da adoção das atitudes acima citadas, pudemos observar o nivelamento da angústia confusional, a partir dos seguintes indicadores:

  • Relação com o espaço: aquisição de deslocamentos independentes e mediados; aquisição do mergulho; divisão do espaço com o terapeuta ou outras crianças; melhora na capacidade de ocupar vários espaços.
  • Relação com os objetos: aceitação do objeto; procura e escolha por objetos; diminuição das estereotipias com os objetos; uso dos objetos para deslocamento (flutuadores); uso funcional dos objetos.
  • Relação com os outros: avanço na relação de dependência inicial; busca do adulto para estabelecimento de relações intencionais; início de uma comunicação verbal ou gestual; aceitação das relações para além das duais.
  • Relação consigo mesmo: diminuição das crises de ansiedade; melhora das estereotipias; demonstração de prazer com a atividade proposta; maior domínio corporal no ambiente aquático e fora dele; maior organização espaço-temporal.
  • 4.1 Sistematização conforme domínios da CIF


    Fazendo um esforço de aproximar os resultados indicados pela pauta de avaliação proposta por Mastrascusa e Franch (2016), largamente utilizada pelos psicomotricistas relacionais, com os domínios da Classificação Internacional de Funcionalidade – CIF (OMS, 2013) obtivemos a seguinte sistematização:

    • Estado de Saúde: Autismo.
    • Funções e Estrutura do Corpo: anamnese, teorias (Garcia; Silva);
    • Atividade e Participação: pauta de avaliação (Mastrascusa e Franch), fotos, vídeos e evoluções;
    • Fatores Ambientais: anamnese, intervenção psicomotora.
    • Fatores pessoais: classificação cita, mas não considera.

    Domínio B – funções do corpo – utilizada para indicar extensão ou magnitude de uma deficiência.
    b114- está dentro das funções mentais, corresponde a funções de orientação;
    b1470 – controle psicomotor;
    b1471 – qualidade das funções psicomotoras;
    b152 – funções emocionais;
    b1520 – adequação da emoção;
    b1521 – regulação das emoções;
    b1522- faixa de emoções.

    Domínio D – atividade (execução de uma tarefa ou ação por um indivíduo) e participação (envolvimento de um indivíduo em uma situação da vida real); desempenho e capacidade (pode ter limitações e restrições)
    d-1550: adquirir competências básicas;
    d210: levar a cabo uma tarefa única;
    d130: imitar;
    d135: repetir;
    d3150: comunicar e receber mensagens através de gestos corporais;
    d3151: comunicar e receber mensagens através de símbolos e sinais gerais;
    d3152: comunicar a receber mensagens através de desenhos e fotografias;
    d3350: produzir mensagens através da linguagem corporal;
    d3351: produzir mensagens através de símbolos e sinais;
    d710: interações interpessoais básicas;
    d7100: respeito e afeto nos relacionamentos;
    d7101: apreço nos relacionamentos;
    d7102: tolerância nos relacionamentos;
    d7103: crítica nos relacionamentos;
    d7104: sinais ou mensagens sociais nos relacionamentos;
    d7105: contato físico nos relacionamentos;
    d7202: regular os comportamentos nas interações;
    d7203: interagir de acordo com as regras sociais;
    d7500: relacionamentos informais com os amigos;
    d7601: relacionamento entre filhos e pais;
    d7602: relacionamento entre irmãos;
    d7603: relacionamento com outros parentes.

    Os sujeitos da pesquisa, dentro da classificação da CIF, apresentavam dificuldades de ligeiras a completas nestes tópicos apresentados, todos avançaram, porém nenhum deles se encontra na classificação de nenhuma dificuldade.

    Domínio E- fatores ambientais – constituem o ambiente físico, social e atitudinal em que as pessoas vivem e conduzem a sua vida.
    e410: atitudes individuais e membros da família próxima;
    e450: atitudes individuais de profissionais da saúde;
    e455: atitudes individuais de outros profissionais.

    5. DISCUSSÃO


    Segundo Garcia (1995) há várias teorias por meio das quais as crianças explicam a necessidade e/ou tendência vincular às suas figuras parentais. Em nossa prática, percebemos uma dificuldade neste aspecto, com as crianças diagnosticadas com TEA. Buscando restituir a continuidade do vínculo ou ampliá-lo qualitativa e quantitativamente, nos colocamos psicomotoramente disponíveis, provocando situações nas quais suscitava-se a necessidade do vínculo e a partir daí, nossa disposição se configurava como uma figura de referência para que trocas fossem estabelecidas.

    As situações criadas eram mediadas no interior do jogo funcional e percebemos que elas foram eficazes, pois as crianças respondiam de forma positiva às atividades propostas, algumas mais, outras menos, porém todas, sem exceção, mostraram alguma resposta.

    Durante os atendimentos prestados listamos várias manifestações corporais e psíquicas que as crianças apresentavam, em todas elas percebemos que as condutas que nivelavam suas angústias vinham de uma postura de ordem, contenção, estrutura e mediação. Para chegar nestas condutas fizemos uso de diversas posturas psicomotoras que tinham por base oferecer um espaço seguro, clareza na proposta, respeito e acolhimento da criança.

    Provocações progressivas foram feitas com o intuito de ampliar as relações da criança, respeitando sempre o nivelamento da ansiedade, que conduzia a intensidade e frequência do estímulo que era ofertado, bem como, a escolha da postura e de conduta do psicomotricista.

    Sobre as tais provocações podemos dizer que ela requer um olhar sobre o tônus da criança e sobre o tônus do psicomotricista e da relação que se estabelece. Para Mastrascusa e Franch (2016), duas grandes dimensões da intervenção psicomotora são o jogo e o diálogo tônico. Concretamente, o jogo, durante a infância, parte do movimento, e está sustentado pelo tônus, que, além das implicações de amadurecimento que o vão configurando, está intimamente vinculado à dimensão emocional.

    A linguagem corporal, constituída de olhadas, contatos, gestos e atitudes se sustentam no tônus, sua partícula mínima significativa, pois uma mudança de tônus muda o conteúdo da mensagem que está sendo passada. (MASTRASCUSA; FRANCH, 2016)

    Por meio do jogo funcional buscamos atingir um diálogo tônico com esta criança. Este, por sua vez, põe permanentemente em jogo a inter-relação de dois sujeitos, e a relação entre duas pessoas não é nunca unidirecional.

    A teoria do Garcia (1995) favoreceu a compreensão da importância do vínculo para constituição do sujeito e de que forma as ansiedades permeiam o desenvolvimento. Retomando o conceito da fantasia básica de confiança e desconfiança é importante colocar que tal fantasia de confiança é ponto de partida para construção da relação.

    Com a nivelação da angústia confusional, percebemos que as crianças passaram a avançar nas relações, pois se abriam espaços, e listamos vários avanços no campo dos objetos, do outro, consigo mesmo e em habilidades aquáticas. É importante colocar que cada criança possui sua singularidade, não há uma regra destes avanços, porém todos os participantes do estudo obtiveram resultados positivos com a proposta.

    Compreender a ansiedade e a postura que devíamos assumir enquanto psicomotricistas para favorecer a diminuição da angústia destas crianças foi fundamental para a abertura ao desenvolvimento.
    Com o intuito de colocar em prática uma classificação padronizada internacionalmente, que aproxime as linguagens e facilite a compreensão universal dos dados, focada na função e participação social, optou-se por incluir estes dados na CIF.

    Os problemas das funções do corpo foram definidas de acordo com o diagnóstico clínico dos sujeitos da pesquisa (deficiência ligeira e moderada), ou seja, os sujeitos apresentavam autismo grau leve e moderado. Conforme citado na metodologia foram excluídas do estudo crianças que tinham comorbidades motoras associadas, dentro da linguagem da CIF se nomeia alterações nas estruturas do corpo.

    No quesito Atividade e Participação tivemos melhoras com todos os participantes, inclusive alguns saíram da classificação de deficiência moderada para deficiência ligeira. Por exemplo, adquirir uma habilidade aquática (melhora na atividade-capacidade), poder utilizar essa habilidade aquática em uma piscina pública (melhora na participação-desempenho), importante colocar que embora seu diagnóstico clínico permaneça, eles melhoraram sua funcionalidade e participação social, ou seja, tem relevância clínica com mudança na qualidade de vida.

    No domínio Fatores ambientais incluímos a anamnese realizada inicialmente com os pais das crianças e posterior avaliação da criança onde foram identificadas as barreiras que impediam a atividade e participação. Incluímos dentro dos fatores ambientais uma mudança que seria a Intervenção Psicomotora, a qual foi um facilitador para melhorar a atividade e participação.

    6. CONSIDERAÇÕES FINAIS


    Pode-se afirmar que o uso de atividades psicomotoras funcionais no trabalho com estas crianças favoreceu os ganhos relacionais, na medida em que proporcionou o nivelamento da angústia e por consequência resultou na organização tônica e atitudinal dos paciente e consequente estabelecimento de uma disposição relacional mais ampliada, com regulação de suas ansiedades.

    Com isso, obteve-se o desenvolvimento de novas formas de relação da criança, favorecendo sua autonomia, qualidade de vida, inclusão social e segurança. Além de aquisição de conteúdos psicomotores funcionais, sua apropriação e utilização em ambientes diversos, para além do terapêutico.

    Percebe-se, portanto, que a utilização de atividades psicomotoras funcionais como mediadoras e estruturadoras do setting terapêutico do sujeito com TEA, podem servir como eficiente porta de entrada para o trabalho psicomotor, possibilitando um espaço acolhedor, seguro e que permite avanços nas relações.

    O papel do psicomotricista mostrou-se fundamental na leitura e decodificação do sujeito com TEA, para traçar as estratégias de aproximação, de provocação, de contenção e favorecer com isso o desenvolvimento psicomotor.

    Com relação aos sujeitos da pesquisa todos obtiveram melhoras em seu quadro. Tais melhoras vão além do proposto inicialmente no estudo, como por exemplo, puderam ser inseridas em atividades de natação adaptada e alguns em grupos de natação.

    Outras crianças a partir da intervenção abriram portas para outras atividades que não seriam exploradas sem esta organização inicial que o trabalho permitiu, ou seja, sua organização fez com que suas figuras parentais pudessem ousar mais nas tentativas de inserção social juntamente com a sustentação e validação do psicomotricista.

    A CIF favorece um olhar dentro da complexidade do sujeito com TEA, abordando elementos que envolvem qualidade de vida, participação social, função e fatores ambientais, correlacionando tais elementos. A intervenção psicomotora, neste sentido, foi uma mudança nos fatores ambientais destas crianças o que ocasionou melhora na atividade e participação.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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