Corpo E Tempo: Diálogos Entre Psicomotricidade E Musicoterapia No Envelhecimento

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CORPO E TEMPO: DIÁLOGOS ENTRE PSICOMOTRICIDADE E MUSICOTERAPIA NO ENVELHECIMENTO

Autora:

Laryane C. L. Silva
Graduada em musicoterapia pelo Conservatório Brasileiro de Música,
mestre em musicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
pós-graduação em psicomotricidade pelo Instituto Anthropos de Psicomotricidade.
laryanelourenco2@gmail.com

Palavras-chave:Psicomotricidade, musicoterapia e envelhecimento.

O som que se faz música. Esta que se faz corpo. Quando os sentidos são despertados, já não importa sua origem. O corpo como captação do sensível, torna-se “material vibrátil”, cuja função “é recolher as vibrações, mesmo as mais ínfimas (...)” (LAPOUJADE, 2017, p. 111).

Soar o que percorre nosso corpo é um ato clínico. Não único nem linear, mas a possibilidade de caminhos. Apresento três instantes onde o intacto, o sem gosto, o inaudível, “penetra o corpo, as orelhas, a boca, o nariz, garganta e pulmões, envolve a pele, suporte de todo sinal que alcança os sentidos.” (SERRES, 2001, p. 171).

No prelúdio, a cena de três irmãs nos encontros de musicoterapia e a morte de uma delas, faz do som uma presença e um acolhimento diante da dor e do vazio. A música como espaço para a elaboração do luto e afirmação da vida.

No interlúdio, a cena de uma mulher diagnosticada de Alzheimer há mais de 10 anos, e o momento em que seu corpo, banhado de memória afetiva, canta para seu marido cego uma canção de amor. Quais qualidades e intensidades de memórias nosso corpo comporta?

No poslúdio uma senhora de 100 anos rompe com sua voz e seus dedos sobre a mesa uma canção improvisada, tecendo num instante de 30 segundos gestos rítmicos e espontâneos, ressoando sua presença num caminho inesperado e capturante.

As cenas buscam problematizar questões do envelhecimento na clínica psicomotora e possibilidades de saúde que o corpo cria diante dos enfrentamentos da vida.

Prelúdio: O som que expressa o silêncio do vazio.

“O silêncio constrói o ninho, o habitat da sensação. Sem ele, ela não existe”. (SERRES, 2001, p.134)

O silêncio é o limite que nos permite ouvir os sons do mundo. O que fazer nestas zonas de limites onde parece não ser possível habitar a sensibilidade? Estas zonas onde não existe nada além do silêncio ou do vazio? Nestes centros inatingíveis?

Mas até nessas zonas desprovidas de qualquer direito de existir, o silêncio nunca é completo e a imobilidade nunca é perfeita, pois “alguma coisa persiste inexoravelmente, que podemos chamar de vitalidade, se quisermos, uma força que não lhes pertence, mas à qual eles pertencem, e que lhes impõem um mínimo de atividade.”(LAPOUJADE, 2017, p. 109). Neste “grau zero” que nos traz Lapoujade (2017) e Serres (2001), nestes estados de neutralidade e de ausência, é necessário uma mudança radical na percepção, onde o limite torna-se uma membrana viva e sensível para que seja possível constituir novos corpos.

Foram 90 anos de convivência com sua irmã gêmea e 86 anos com sua irmã mais nova. Od, Tê e Dj, três irmãs que abriram espaço em suas vidas cotidianas para um encontro musical uma vez por semana. Sem pretensões performáticas, mas um grande encontro com afetos que fluía desde cedo com o almoço, os contos da semana e de outros tempos, as memórias, e finalmente o cantar junto.

Eram três que se transformavam em 4, ou cinco ou seis. Agregava-se a cozinheira, um neto que visitava, uma filha que chegava ou um eletricista que num dia qualquer estava fazendo um reparo. Cada semana tinham 1 ou mais músicas que elas traziam para suas pastas e o repertório vindos de sua história sonoro-musical era vasto e carregado de outros fragmentos de suas relações com a vida.

Um pouco depois do natal recebi uma mensagem dizendo que Od. tinha falecido de um infarto fulminante e que o enterro aconteceria no dia seguinte. A primeira imagem que me veio foi a Od. dançando na sala ao som de Bésame Mucho (Consuelo Velásquez), relembrando sua primeira dança num baile com um rapaz que lhe gostava. Lembrei do seu corpo dançante, de sua presença travessa que transparecia sua menina sorridente e imprevisível. Carregamos nossa criança conosco, mas em muitos momentos tenho a sensação que é ela que nos carrega para pular algumas cordas da vida. Logo depois desta imagem, tive a sensação de que os encontros estariam ameaçados com a presença do vazio e da ausência de Od.

Como permanecer presente diante da ausência do outro? Como não romper com a realidade diante da morte de alguém que ama? Lapierre e Aucouturier (2004) trazem a necessidade de destruir uma estrutura para construir uma nova ou a pessoa pode se enclausurar numa agressividade destruidora quando o desejo de morte prevalece sobre o desejo de vida, quando a destruição torna-se maior do que o desejo de reconstrução. A pergunta que ficava era: seria possível reconstruir um espaço simbólico com outras estruturas a partir de uma ruptura tão intensa como a morte de Od?
Seria suportável para elas recomeçar um encontro onde as condições a colocassem todo o tempo em contato com a presença deste Outro e com a dor de sua ausência?

No horário do enterro fui para estar com Tê, sua irmã gêmea de 90 anos,e por algumas horas fomos conversando sobre Od. Ela comentou que se sentia perdida e com muita dor no peito. Fiquei ao seu lado, às vezes fazendo um pequeno toque nas costas como costumava nos encontros. Logo chegaram os familiares e fui para casa.
Passaram-se algumas semanas sem falarmos sobre os encontros, e eu senti em mim a necessidade de silêncio. Percebi que também fazia meu luto e que precisava de um espaço no tempo.

“Quando um organismo não está calado, que voz ele faz ouvir?
(...) silêncio nos órgãos, harmonizados, claro, com o silêncio exterior, mas sobretudo o silêncio da língua em mim. Minha primeira cura, sem dúvida difícil, de desintoxicação. Quem roga para uma estética, roga para que suas anestesias vão embora.” (SERRES, 2001, pg. 87)

Aqui o movimento se cala. Como psicomotricistas, tentamos perceber a necessidade de viver o longe, a distância, a imobilidade do corpo numa situação relacional (Lapierre e Aucouturier, 2004). Ao mesmo tempo, estava atenta às percepções internas do meu próprio corpo e os conflitos gerados desta vivência afetiva.

Após algumas semanas a filha de Tê entrou em contato, dizendo que a mãe e a tia gostariam de voltar aos encontros.
Na clínica psicomotora, o movimento cria diversos caminhos possíveis, e perceber estes caminhos motores e o percurso que o cliente faz de expansão, contração, rotação, sustentação, exploração, etc, são também simbólicos e nos ajudam a situar por qual caminho o corpo do cliente está passando.

O pedido de retorno representou para mim as possibilidade de elaborar este vazio através da expressão do que foi vivido. Talvez assim, pudéssemos construir um “novo eixo”, uma nova paisagem sonora. Neste sentido, “ouvir música [poderia ser] simplesmente deixar-se levar por lugares que se fazem, por momentos que tornam uma matéria em material expressivo e cujas forças nos ajudam a fazer conexões (aqui falo de quaisquer conexões: lembrar de um lugar, imaginar uma imagem, ouvir uma sonoridade, conectar um som com outro, ouvir um desenho, uma proporção, um significado qualquer)”(FERRAZ, S; 2018, p.48).

Quando cheguei no nosso encontro conversamos um pouco, tomamos um café e montei o teclado. Elas foram trazendo verbalmente as lembranças de Od. e o acontecido. Veio o choro, os risos e a saudade. Num determinado momento coloquei que a presença de Od estava bem forte em nosso encontro e propus que elas escolhessem uma música para cantar para Od naquele momento. Dj abriu sua pasta e imediatamente iniciou “Debaixo dos caracóis” de Roberto Carlos.

“Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, uma história pra contar, de um mundo tão distante…” (Roberto Carlos)

A questão aqui não é perguntar o que esta música representa para elas. Não se trata de representação, mas de relação. Falando sobre os compositores, Ferraz (2018) nos traz que eles “foram atraídos por um efeito, por uma força quase que sem nome, a qual tem a potência de tornar sonora a temperatura, de tornar sonoro o movimento, de tornar sonora a força da tempestade e de tornar sonora uma situação não sonora como a tristeza”(FERRAZ, 2018, p 23)

Eu sabia que o que tinha alí não era simplesmente um território sonoro. Era um território que tornava sonora uma estrutura das relações.(Ferraz, 2018)

Cantar é expressar através do som a tristeza, a saudade; mas Cantar é também conquistar um lugar no mundo. Pronunciar um ato, um movimento, tornar-se real, invocar o direito de existir. Quando elas trazem na sua voz e no seu corpo a canção para sua irmã que partiu, aproximam através do som o abismo da ausência de Od. e evocam suas existências numa manifestação concreta de vida, pois “um acontecimento sonoro não tem lugar, mas ocupa espaço” (Serres,2001) e “volume” (Lapierre e Aucouturier, 2004).

Interlúdio: o som que aproxima os afetos onde a memória cognitiva se distancia.

“Amar um corpo, esta raridade bem singular; em toda superfície da terra, nenhum livro tem maior preço. Amor nos torna confusos, dois vasos vertem juntos.”(SERRES, 2001, p. 172)

Tetê, como eu a chamo carinhosamente, hoje com 87 anos, iniciou o trabalho a domicílio há 1 ano e meio em sua própria casa devido às dificuldades motoras em que ela se encontrava. Diagnosticada com Alzheimer há mais de 10 anos, mora com seu esposo Sr. José e recebe o cuidado de duas cuidadoras e das filhas que se revezam durante a semana para estar com eles.

Tetê, maranhense, sempre foi ativa, trabalhou como enfermeira até se aposentar, criou 3 filhas com seu esposo e, segundo elas, a mãe sempre foi a “cabeça” da casa, quem dava a “última palavra”, quem pagava as contas no banco e administrava o dinheiro. O esposo, militar aposentado, fazia parte desta configuração familiar, mostrando-se sempre mais dependente da mulher e aparentando uma certa submissão ao longo dos anos. Após seus 50 anos, ele descobriu uma doença visual degenerativa e foi aos poucos perdendo a visão, acentuando ainda mais sua dependência o que o levou a entrar num processo depressivo. Tetê começou a perder a memória recente, e a evolução da doença foi se dando ao longo do tempo.

A família, sempre muito presente, é extremamente carinhosa e atenta às necessidades do casal, apresentando muita admiração por eles.
Quando iniciei o trabalho com a Tetê, logo me chamou a atenção sua voz firme, seu sorriso aberto e seus movimentos grandes e intensos. Ela de fato sabia ter presença com seu corpo. Ao trazer algumas marchinhas de carnaval, ela demonstrou muita alegria e cantava todas com muita facilidade.

Iniciamos só eu e ela, mas logo o Sr. José estava participando conosco envolvido pela música e acompanhando o ritmo com o pandeiro. Enquanto ele sempre trazia “os anos que eles estavam casados”, por muitas vezes ela perguntava quem era “aquele senhor que estava sentado alí conosco”. Logo percebi que eram dois movimentos paradoxos da memória. O primeiro tentando segurar o tempo numa caixa fechada, numa linha reta, afirmando sempre os anos que moravam juntos e as filhas que tiveram, repetindo uma história com os mesmos ciclos, as mesmas frases e datas.

Sua história no tempo parecia uma forma de lhe dar um chão, um pertencimento, uma identidade. Num outro plano, sempre fugidio, as imagens de Tetê se escapavam a todo momento, perguntando quem era aquele moço, o que eu (terapeuta) fazia alí, e muitas vezes apresentando uma angústia por não reconhecer onde estava e dizendo que precisava ir embora para casa onde sua mãe a estava esperando.

Nesta assimetria temporal, a música era uma ferramenta de encontro, a possibilidade de um caminho acompanhado um com o outro. Neste ponto, a música é uma arte que proporciona uma gravidade, um eixo, seja por uma linha melódica, uma pulsação que se estabelece no ritmo ou simplesmente por outros elementos sonoros. Porém, este mesmo eixo é mutável, e permite linhas de fuga e escapamentos.

Como diz Ferraz (2018), Música é aquilo que se faz ao mesmo tempo que se desfaz, que ganha uma realidade a cada instante, sempre trazida pelo futuro. Daí a música seguir a dinâmica da repetição, vista como o ato de repetir sempre a condição de trazer o diferente, de permitir novas conexões.

A questão neste caso traz uma outra problematização na clínica. Em que parte do corpo encontra-se a memória? O que é um corpo de memória? Em casos como este, é muito comum os familiares colocarem que o corpo está alí, mas a alma não. Como se, sem esta caixa de memórias passadas, permanecesse apenas um corpo esvaziado e sem vida.

Estamos acostumados a pensar a subjetividade como uma sucessão de memórias numa ordem cronológica. Esta forma de pensar está atrelado a um tempo linear, organizado na ideia de causa e efeito (O que eu faço hoje garante o que quero amanhã; o que aconteceu ontem causa meu estado hoje, e se assim eu repetir terá o mesmo resultado no futuro).

Este pensamento é da ordem da racionalidade, onde não tem espaço para o imprevisto da vida. É o presente fixo nos apoios de um passado inerte, da ordem. Porém, o passado não é uma memória arquivada, não é um baú fechado que se abre quando pretendemos tirar algo de lá.

Rauter (2012) citando Bergson, coloca que a memória não pode ser entendida como algo que se constitui de um presente que passou e se inscreveu em alguma região do cérebro. “Não é o nosso psiquismo que cria ou contém o tempo, mas a subjetividade que está imersa no tempo ou está contida numa memória que é maior que ela. Onde há vida, aí o tempo está inscrito.”(RAUTER, 2012, p. 113) Portanto, pensar a memória na psicomotricidade, não é enclausurá-la numa perspectiva cognitivista ou biomédica, mas entendê-la como um campo de forças que se atualizam todo o tempo com o presente e com as impressões que se criam destas forças.

Buscar na clínica um corpo intensivo, uma intervenção no nível da superfície e não reduzida à memória, à história ou a um organicismo puramente biológico é uma mudança de perspectiva sobre o corpo. Aqui, o corpo é um organismo vivo atravessado por muitos agenciamentos.

O que fazemos na clínica é trazer experiências sensíveis para que o tempo inscrito neste corpo traga algo que faça sentido na atualidade, seja num gosto, num som, num gesto, num olhar, numa imagem. E foi isto que ocorreu num dia logo após nosso encontro, quando, completamente tomada pela emoção destas intensidades, Tetê se levantou da sala e foi ao quarto cantar uma música de amor para o seu esposo, no momento em que seu corpo inscrito de memória afetiva, toma o tempo e o dobra num som intangível de encontro.

“Meu coração, não sei porque, bate feliz, quando te vê…”. Naquele momento, Carinhoso (Pixinguinha) tornou-se sua canção, seu presente para o companheiro; a memória de um corpo marcado pelas lutas, alegrias, lugares, brigas, olhares, abraços...acompanhado de 63 anos de convivência. Esta memória encontra-se num outro registro que não é da razão, da cognição ou do cérebro. Todo o corpo é expressão de memória. Portanto, Carinhoso não foi somente uma música, mas toda a memória do corpo de Tetê na relação com seu companheiro.

Quando ouvimos sons, não escutamos somente as notas ou frases musicais, mas escutamos tudo aquilo que vem com os sons.

“Não temos como ser surdos às relações que os sons tecem com nossas vidas; um grito, um chamado, um choro, um pedido, a voz humana, uma lembrança qualquer, uma paisagem sonora. E assim vai.” (FERRAZ, 2018, p. 81)

Poslúdio: o som que inscreve a carne no movimento espontâneo

O som rompe o silêncio numa improvisação rítmica-sonora, enlaçando naquele instante a saída da visita de seu genro Jair que “não volta mais”.
O corpo vivido torna-se verbo. Pura ação, pulsão do movimento. Nele derramam-se odores, sabores, imagens, toques e sons, objetos sensíveis que constituem o corpo de Beatriz há 100 anos.

Marcado, calejado, este corpo pode criar.

“Criar é antes de tudo testemunhar.”(LAPOUJADE, 2017, p. 93).

É necessário que meu corpo testemunhe os afetos, as relações, os ruídos, as imagens. É necessário que meus olhos, ouvidos, boca e pele sejam generosos para com o mundo, com suas paisagens e odores, com o cheiro do mar, com a chuva que cai, com o olhar de um amigo, com o choro de uma criança, com seus sabores, enfim, com a vida e seus encontros.

É possível criar sem sentir? É possível viver sem criar? Como meu corpo pode existir de forma mais plena, real, inteira? A questão que colocamos neste caso é de como, na clínica, sustentamos o criar-se humano, esta obra inacabada que é o homem, abrindo espaço para que sua voz, seu corpo, num processo criativo de existência, possa aparecer.

Lapoujade (2017), trazendo o filósofo Souriau (1938), nos provoca para uma reflexão sobre as diferentes formas de existências, e de como tornamos reais nossa própria existência e outras existências mínimas. Ele coloca que “não somos reais pelo simples fato de existirmos; somos reais apenas se tivermos conquistado o direito de existir” (LAPOUJADE, 2017, p. 104). Conquistar o direito de existir é tornar-se real, é tornar-se legítimo, é ver sua existência sustentada no próprio ser, ou seja, é afirmar todo o tempo a vida.

Mas como podemos conquistar este direito? Admitindo novas entidades, capturando-as no momento da sua aparição ou desaparecimento, criando o mundo com nosso corpo ao mesmo tempo que ele é criado pelo mundo. Para Nietzsche, “interpretar e organizar o mundo não quer dizer conhecê-lo, mas criá-lo”(DIAS, 2011, p.58)

E porque o processo de criação torna-se tão importante na clínica psicomotora? Para Lapierre e Aucouturier (2004), a atividade motora espontânea é vivenciada no presente, um presente que está sempre se modificando, e tal atividade, é a base da criatividade, dessa busca constante na qual nada é fixo e nada se repete.

Criar para os autores, é satisfazer um desejo de sobrevivência. Citando Nietzsche, Dias (2011) nos traz que o homem se insere na vida pelo corpo, e que o corpo se cria na criação que ele faz do mundo. A vida aqui não é dada, mas precisa sempre criar novas possibilidades de vida. Por isso a experiência artística nos conecta com forças expansivas e afirmadoras da vida. Mas não uma arte fechada em si, porém uma postura artística diante da vida, a instauração de novas formas de existência.

“É neste jogo diferencial que fazer música é fazer com que forças possam emergir de modo sensível em um material. Que forças são essas? As forças do tempo, do espaço; forças de gravidade, força centrípeta e centrífuga, forças de conexão...as quais não retornam nem na forma, nem na matéria ou no conceito, apenas reaparecem sempre travestidas em um material que as faz sensíveis.” (FERRAZ, 2018, p. 78)

Beatriz, sem nunca ter estudado música formalmente, utiliza-se da criação sonoro-musical para expressar a força daquele instante. O som atravessa a estrutura da linguagem e entra em outros caminhos, completamente aquáticos, movidos pela incerteza da improvisação, num movimento espontâneo, que só é possível quando o corpo torna-se sensível. Corpo sensível é aquele onde a escuta se faz em todas as partes.

“Ouvimos pela pele e pelos pés. Ouvimos pela caixa craniana,pelo abdômen e pelo tórax. Ouvimos pelos músculos, nervos e tendões.”(SERRES, 2001, p. 138)

Neste sentido, “não se diz mais que é música aquilo que é sonoro, mas sim que fazer música é tornar sonoro forças não sonoras: forças de crescimento, forças de conexão humana, forças de guerra, forças táteis, forças visuais (...) é um verdadeiro campo de batalha”. (FERRAZ, 2018, p. 73,124)

E é neste campo de batalha que somos colocados. Muitas vezes convidados, outras vezes impelidos a chegar, simplesmente lançados neste espaço-tempo. Iniciamos como uma célula, nesse movimento primitivo de pulsão de vida, e vamos dançando no palco do tempo; criando nossas existências a cada momento, num ritmo constante de pulsação, ressonâncias e afetos.

“O que se move em mim quando danço, canto, ouço, toco, saboreio?
O que se move em mim?
O que se move?”

Referências bibliográficas

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FERRAZ, S. Livro das Sonoridades: notas dispersas sobre composição. 3.ed. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora Ltda., 2018.
LAPIERRE e AUCOUTURIER. A Simbologia Do Movimento: Psicomotricidade e educação. 3.ed. Curitiba, PR: Filosofart Editora, 2004.
LAPOUJADE, D. As existências Mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017.
RAUTER, C. Clínica do esquecimento. Niterói: Editora da UFF, 2012.
SERRES, M. Os cinco sentidos: filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

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