O Sujeito na Prática Psicomotora – Autor: Vera Lucia de Mattos

O Sujeito na Prática Psicomotora: Imagem ou Esquema Corporal

Autor:

Vera Lucia de Mattos
Sócia titular da ABP
Fonoaudióloga e Psicomotricista
Mestre em Psicologia Social
Doutora em Fonoaudiologia
Professora titular de Psicomotricidade da UNESA e em diversas Pós-graduações em território nacional
Membro da ABENEPI
Diretora e fundadora do Móbile - Centro Integrado de desenvolvimento
Contato: vlmattos@globo.com

“O corpo é primeiro e acima de tudo um corpo pulsional.”
(Freud, 1923)

Esse artigo foi produzido em co-autoria com fonoaudióloga Cláudia Maria Lutterbach Lopes da Silva e a psicóloga Márcia Guerra, para a revista Infanto Rev.Neuropsiq.da Inf. e Adolesc. 4(2):49-51, em 1996 e está em seu formato original.

O que apresentaremos hoje, aqui, é o resultado por um lado do trabalho de pesquisa realizado na Clave no ano de 1994 sobre a representação da Imagem Corporal e, por outros dos estudos teóricos das autoras.
A união destes percursos nos levou a uma revisão conceitual sobre a questão do Esquema Corporal e da Imagem Corporal, uma vez que na clínica psicomotora não é possível determinar em que momento estamos atuando sobre cada um destes aspectos separadamente.

Esquema Corporal

Noção que, como todas as que apareceram na virada do século, traz muita ambiguidade. É um conhecimento intuitivo e sintético do corpo, seus segmentos, suas articulações e sua utilização.
Conceito originário da neurologia, fazendo alusão ao equipamento neuromotor. Tem caráter objetivo, pois evolui de forma semelhante no Homem, podendo variar através da aprendizagem, em sua qualidade de acordo com o emprego do sistema neuromotor. Ex.: aprender a jogar bola, dançar etc.
Sempre foi um conceito ambíguo, já que na literatura pertinente era abordado muitas vezes de forma a confundir-se com o conceito de Imagem Corporal, este oriundo da Psicologia.

Século XVII – Locke

Este autor nos diz que finalmente não deveria haver diferenças entre a experiência exterior (a das sensações) e a experiência interior (a da reflexão).

Século XIX - O Problema Surge Sob Outra Forma

Sabemos como percebemos o mundo exterior pelos mecanismos cujo conjunto constitui a exterocepção, e tentamos compreender se existe função simétrica na fisiologia da percepção através da qual poderíamos explicar o conhecimento do nosso mundo interior.
Essa dialética do Dentro e Fora permeia, até hoje, a noção de Esquema Corporal.
1901 - Comak - fala de Auto representação do organismo.
1905 - Bonnier - utiliza o termo Esquema.
1906 - Wernicke - serve-se da expressão Auto psiquê
1911 - Head e Holmes - designam um Esquema postural (postural model of body), modelo em relação ao qual minhas modificações posturais são mensuradas antes de entrarem no campo da consciência.
1922 - Pick - sugere a expressão Imagem espacial do corpo.
1934 - Van Bogaert - sugere a expressão nosso corpo Imagem de nosso corpo.
E, assim, uma série de variações ou designações - “body percept, body concept, moi corporel, conscience corporelle, corps physique actuel, image du corps dans le cervaux etc.”
Em 1941, Schilder, em seu livro IMAGEM DO CORPO, promove um amalgamento nos dois conceitos acima, tornando ainda mais confusa a compreensão dos mesmos, no entanto traz um dado novo que nos parece relevante. E a importância da motricidade. Para Schilder, a percepção é impossível sem a ação, os dois são indissoluvelmente ligados.
Por intermédio desse autor, Psiquiatra e Psicanalista, pudemos ter a indicação de um componente psicológico e relacional, um certo sentido! No entanto ele não atingiu o objetivo desta síntese, pelo contrário, amplia a confusão deste conceito, pois sua noção de Esquema Corporal referia-se àquilo que há de biológico em relação à postura e às referências de movimento, enquanto que o termo Imagem do Corpo terá permanentemente uma conotação psicanalítica teorizada satisfatoriamente por Lacan e Dolto.
Le Camus, em O Corpo em Discussão, aborda a questão destes conceitos se aproximando do paralelismo existente no mundo médico que promove uma separação do homem em coisas da Mente e coisas do Corpo.
Essa visão cartesiana tem norteado os trabalhos científicos das últimas décadas. Mesmo Murcia (1990), em seu artigo “A Propósito da Noção de Esquema Corporal - Reflexões e Perspectivas”, insiste em abordar os dois conceitos.
“O corpo identificado realiza a imagem do corpo” (que se pode definir como a experiência consciente que nós fazemos deste objeto particular identificado como o corpo que nós habitamos).
“...O corpo situado seria o esquema corporal no sentido de Head c Holmes (1911) enquanto referido à posições das partes móveis e à posição da cabeça sobre o corpo num espaço de referência egocêntrica...”
No entanto, quem não se lembra de ter ouvido, lido ou aprendido que o “Homem é um ser global”? Temos de vê-lo como um todo, Mente e Corpo unidos num só Ser. Ora, nestas frases, está mais uma vez, o paralelismo presente! Não por sua afirmação, mas sim pela tentativa de negação, o que dá no mesmo. Nossa proposta, hoje, aqui, é de sugerir pensarmos de forma diferente a questão do Esquema Corporal. Ressignificá-lo tornando mais fácil o seu entendimento, não permanecendo no dualismo que vem nos encarcerando desde o século XVII.
Para tal, falaremos um pouco da formação da Imagem do Corpo e tentaremos aplicar o conceito de Esquema Corporal enquanto canal, ou via possível da representação desta Imagem, ou melhor, enquanto ECONOMIA do ato motor, sem dúvida permeado pela REPRESENTAÇÃO CORPORAL.
Para falarmos da formação da Imagem Corporal faz-se necessário registrar que a Imagem Corporal abarca toda nossa sensório motricidade e percepção, determinando assim que cada função motora pressuponha um investimento libidinoso, isto é, um percurso pulsional sobre o corpo do próprio sujeito, onde a partir daí este começa a se preparar para a construção do seu próprio corpo. Esta construção é alicerçada nas vivências de sensações auditivas, visuais, táteis, gustativas, labirínticas, cinéticas, tônicas etc... que o indivíduo pode ter nível do seu corpo, como também toda gama de percepções que correspondem às variações das sensações.
Para que esta construção se faça, é necessária uma relação onde haja um sujeito capaz de testemunhar todas as sensações e variações que se desenrolam no corpo de uma criança em resposta a todo um investimento do outro. É a partir desse investimento do outro no corpo de um bebê (pulsionalização do biológico) que se abre a porta para constituição do psiquismo. Esse investimento ocorrerá calcado na necessidade do bebê de que uma ação específica, vinda de uma outra pessoa, supra suas necessidades, e a fim de possibilitar a descarga de tensão é que ocorrerá o investimento do outro. É ao suprir as necessidades do bebê que a tensão estará sendo descarregada e com o investimento desse outro que o corpo do bebê estará sendo erogenizado e recebendo objetos para apaziguar a pulsão. O que irá distinguir os efeitos psíquicos produzidos pela pulsão será exatamente a erogenização na primeira infância, e os objetivos oferecidos para apaziguar a pulsão serão, para sempre, procurados, mesmo com o psiquismo já formado.

Esse corpo erogenizado é um corpo que faz desejar, que busca e aceita as sensações gratificantes. O investimento do outro nesse corpo é essencial e irrenunciável, pois é a partir deste que o indivíduo se capacita a existir enquanto psiquismo e consequentemente enquanto possibilidade de ato motor.
Esse corpo é o corpo que recebeu investimentos dos cuidados maternos singulares, desejos e fantasias, corpo das emoções, lugar de sensações que possibilitarão a construção de sua própria especificidade.
Para que esta singularidade possa vir a ser, a simetria do bebê em relação à mãe é quebrada pelo investimento do outro, que ao cuidar do bebê, erogeniza seu corpo, de forma a possibilitar que, virtualmente, possa surgir um sujeito. O corpo que até então era fragmentado ganha uma unidade. Essa simetria é revertida numa virtualidade quando a criança experimenta, ao assumir sua Imagem no Espelho (Estágio do Espelho - Lacan), toda uma sorte de gestos e movimentos para animar esta imagem e a partir dali montar uma unidade corporal. Esta imagem só será nomeada a posteriori, na representação corporal, e para que haja a possibilidade de representação corporal ocorrerá a assunção da Imagem no Espelho enquanto Economia Corporal. A Economia Corporal surgirá a partir dessa quebra de simetria, matriz simbólica em que a Economia se precipita de forma primordial, antes mesmo de estar no campo da linguagem e sustentado pela Representação Corporal.

Imagem ou Esquema Corporal?

Não só imagem, não só esquema, mas sim, uma economia corporal para um porvir de representação corporal.

Referências Bibliográficas

FREUD, S.- O ego e o id. Edição Standard Brasileira das Obras complementares de Sigmund Freud, 1923.
PACHECO, O. - Onde estava sujeito? Dissertação de Mestrado em Teoria Psicanalítica UFRJ. 1994 - Grupo de Estudos / Psicanálise, 1989/1995.
BOSCAINI, F. - Qual é a Identidade Corpórea da Psicomotricidade? Revista do Corpo e da Linguagem 1(11):123-126, 1983.
FONSECA, V.- Da filogênese e antogênese da motricidade. Porto Alegre. Artes Médicas, 1989.
LACAN, J.- O estágio do espelho. Comunicação ao XV Congresso Internacional de Psicanálise em Zurique, 17/07/ 1949. Tradução - M.D. Magno. Original - Écrits - Paris, Sem il, 1966.
GUERRA, M. - Grupo de estudos com psicanálise / psicomotricidade, 1994/95.
FONSECA, V.- Escola, Escola, quem és tu? Porto Alegre. Artes Médicas, 1992.
SCHILDER, P. - A imagem do corpo. As energias construtivas da psiquê.São Paulo. Martins Fontes Ltda, 1981.
MURCIA-A propósito da noção de esquema corporal. Lisboa. Reflexões e Perspectivas, 1990.
AJURIAGUERRA, J. - A criança é seu corpo, Texto não publicado, 1985.

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