O Terapeuta Único na Clínica Transdisciplinar da Infância – Autor: Eduardo Costa

Autor:

Eduardo Costa
Psicomotricista Clinico e Educacional;
Doutor e Mestre em Ciências: Saúde da Criança - IFF/FIOCRUZ - M.S.;
Criador e Formador da Formação em TransPsicomotricidade Educacional e Clínica;
Sócio Titular ABP e coordenador da Comissão Científica ABP (2011-2015);
Organizador dos livros: TransPsicomotricidade (2013) e Corpo Transbordante (2017) pela WAK editora.
Email: trpm.ed.cl@gmail.com
 

“O Terapeuta Único na Clínica Transdisciplinar da Infância: um olhar da TransPsicomotricidade”

Eduardo Costa

I - Introdução:

Observando o estado da arte das premissas teórico-técnicas que sustentam o funcionamento das equipes clínicas e mesmo das educacionais constatamos a busca de um exercício interdisciplinar de compreensão científica dos fenômenos, que ocorre, na maior parte das vezes, de forma limitada e parcial.

Na contramão destes movimentos mais tradicionais da multidisciplinaridade que, eventualmente, se torna interdisciplinaridade, falar de TransDisciplinaridade pode causar estranhamento e incredulidade.

Uma utopia para alguns, a proposta transdisciplinar se sustenta a partir da necessidade cada vez mais premente da religação de saberes em prol da ampliação e aperfeiçoamento de estratégias para o enfrentamento de questões ligadas ao humano e que a ciência clássica não encontrou respostas.

Izabel Petraglia (1995), estudiosa brasileira do Pensamento Complexo e da Transdisciplinaridade, nos mostra que na “Transdisciplinaridade há a superação e o desmoronamento de toda e qualquer fronteira que inibe ou reprime, reduzindo e fragmentando o saber e isolando o conhecimento em territórios delimitados.” Pág. 74.

Com a aliança entre saberes que ficaram tanto tempo divorciados pelo pensamento simplificador, surgem novas óticas, descortinando aspectos antes vedados à compreensão, o que amplia a capacidade de encontrar saídas e soluções para as questões em foco, tendo o respeito pelas necessidades multifacetadas dos sujeitos e processos envolvidos.

A TransDisciplinaridade se ocupa em reintroduzir o SUJEITO como eixo de qualquer intervenção, condicionando-a a sua complexidade.
O pensador francês Edgar Morin, nos alerta, em várias partes de sua extensa obra, que ao enunciar o “novo” atraímos o ódio. Ele recorda também que as grandes ideias foram sempre inicialmente consideradas “loucas” e impossíveis de realizar.

Portanto, a TransDisciplinaridade é um desafio permanente, nunca estará instalada como um “programa” em nossos cérebros possuídos pelo pensamento simplificador.
É preciso estar sempre atentos e duvidando das próprias certezas absolutas, evitando as armadilhas que nos arrastam para a prevalência da simplificação e quantificação.

Em um momento de crise planetária, o “novo” não pode ser apenas assustador, ele também se torna auspicioso quando comparado com a exaustão das soluções hegemônicas.

Com esta reflexão, venho compartilhar um caminho percorrido. Não trago fórmulas mágicas ou verdades definitivas. 30 anos de prática em Psicomotricidade Clínica e Educacional; 15 anos como Formador em TransPsicomotricidade; 17 anos como supervisor de equipes transdisciplinares; 29 anos de paternidade; 6 anos como avô, me habilitam a refletir sobre as bases de nossa prática clínica no lugar de terapeuta único e como supervisor na equipe multiprofissional transdisciplinar.

O olhar da TransPsicomotricidade (Costa & Lovisaro, 2013) nutre-se no Pensamento Complexo e na TransDisciplinaridade aliadas às vertentes livre-expressivas da Prática Psicomotora Educacional e Clínica.

É uma prática libertária, que possui como princípios os sete saberes necessários à Educação do futuro, propostos por Morin em 2000 e disseminados pela UNESCO. Estes sete vazios que o autor identifica na Educação, também se aplicam à compreensão das instituições clínicas e facilitam a construção sempre inacabada do exercício transdisciplinar.

II - O que está conectado quando falamos em TRANSD?

Uma atitude transdisciplinar é norteada pela concepção da vida como tessitura, onde é preciso reconhecer fios de ordem biológica, psíquica, social, espiritual, cultural, dentre outras, na composição do humano.

Somos multifacetados e quando buscamos uma compreensão transdisciplinar, que sustenta nossas ações transdisciplinares, pretendemos respeitar ao máximo a complexidade das singularidades e do todo que as envolve.

Falar de “Ação TransD” é sempre falar de um caminho original, como nos fala Machado em sua célebre poesia “Proverbios y cantares XXIX”: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar....” do livro Campos de Castilla, 1912.

Para desenhar uma metodologia ou construir uma equipe transdisciplinar, é fundamental compreender que não há modelos a serem aplicados e que a construção será singular. Os princípios são claros e explicitados nas cartas da transdisciplinaridade, forjadas nos poucos encontros realizados pelos estudiosos voltados para o tema nos últimos 20 anos, especialmente no primeiro, ocorrido em Arrábida, Portugal.

Algumas premissas compõem e sustentam teoricamente o caminho escolhido pela TransPsicomotricidade - o Pensamento Complexo em Morin (2000, 1986, 1989) e a lógica do terceiro incluído da TransDisciplinaridade, em Nicolescu (2002).

Estas escolhas decorrem da busca de uma compreensão científica que possa abarcar a complexidade da existência, ao menos em parte, sem a fragmentação habitual da estrutura disciplinar, contudo, se beneficiando de todas as contribuições disciplinares.

A procura de princípios explicativos que se apoiem na contextualização dos fenômenos observados, com a reconexão das partes e o resgate do todo que retroalimenta as partes e vice-versa. Uma lógica para compreender a complexidade inerente aos fenômenos humanos e naturais.

Nas relações de ajuda aos desviantes, frutos de uma trajetória mais acidentada da espiral do desenvolvimento, encontramos sujeitos mergulhados em sua hipercomplexidade e sem decifrações fáceis ou curas medicamentosas.

A quantificação de seus comportamentos e as técnicas de adestramento, na maior parte das vezes, apesar de se apresentarem como “as” alternativas viáveis, levam a poucos resultados, especialmente no que tange à subjetividade em sua potência criadora e tradutora de uma identidade unificada.

Assistimos em nossa sociedade a uma “patologização” de comportamentos humanos que sempre se apresentaram em nossas naturezas “sapiens/demens” como faces da multidimensionalidade e diversidade de cada um de nós. A rotulação de nossas características como traços de doenças ou síndromes, encarceram nosso direito, e possibilidade de seres singulares, a uma existência plena e rica.

Mesmo fora do que é francamente padronizado como patológico, assistimos a este exercício coercitivo como nos aspectos de gênero, por exemplo, que determinam um embotamento de potencialidades inerentes a cada ser, levando a uma ação “verdadeiramente masculina” ou “verdadeiramente feminina” em prol da adequação social.

Compreender em profundidade um ser humano que sofre, demanda também a sabedoria das disciplinas, contudo, a exclusão do sujeito é um preço muito alto que deve ser questionado e revisto.

O olhar disciplinar para a realidade desenvolveu a fragmentação em “objetos de estudo” delimitados e estanques onde o pesquisador pudesse encontrar a “verdade das verdades” e entender as leis fundantes de funcionamento de cada um dos focos de estudo.

Com este mesmo movimento foram excluídos os “fatores de confusão”, vieses que transtornavam a objetividade científica redutora, como a subjetividade/emoção, a arte, a religião, que apesar de favorecerem a compreensão das tessituras observadas, também traziam a incerteza, a dúvida, as ambivalências irredutíveis, inerentes à complexidade.

A demanda humana é hipercomplexa. Nos desafia constantemente à desconstruir nossas lógicas simplificadoras e à religar saberes para entender o básico sobre as múltiplas causas e consequências de cada gesto, cada aproximação e afastamento, de nossas necessidades e desejos.

O exercício clínico nos coloca em um campo de dicotomias extremas. O sofrimento é a tônica e abrange não só o “sujeito” de nossos esforços, mas sua família e a comunidade em que está inserido.

Usufruindo da lógica cartesiana e taylorista, ainda vigentes, se há defeitos no mecanismo, há de se entregar cada segmento prejudicado ao especialista correspondente para que o reparo possa ser realizado, com a rapidez e eficácia próprias daqueles que dominam as técnicas corretas para cada déficit apresentado.

Nesse afã de “libertar” o outro de seus sintomas, sem perceber os pedidos inerentes a cada um deles, eliminamos as consequências sem estabelecer contato com as causas e campos originários.

Um olhar transdisciplinar, “poliocular”, como define Morin (1989) não se submete, e, portanto, não subjuga ninguém a uma lógica simplificadora e redutora, encaixando um sujeito complexo/hipercomplexo em definições e caracterizações simples.

Como decorrência, não lança mão de um especialista para cada problemática apresentada e se dirige ao Sujeito/Individuo e não ao fragmento “adoecido”.

III - Emerge a questão: Quantos terapeutas para uma criança???

Talvez este seja um dos pontos chave de diferenciação dos olhares disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar para o Sujeito que sofre, especialmente a Criança.

Até a concepção interdisciplinar os muros disciplinares continuam erguidos.
Apenas uma abordagem TransD ousa problematizar essa “verdade absoluta” e irrefutável de um especialista para cada dificuldade apresentada.

Em um panorama histórico da nomeação e compreensão das patologias e do avanço em seus tratamentos, percebemos uma pulverização disciplinar, onde o sujeito foi totalmente excluído, gerando até hoje muitas ações iatrogênicas, muitas vezes definidoras de destinos.

Como lembra Jerusalinsky (2010), “Antes faltava bondade, depois razão, mais tarde função, agora falta substância.” Pág. 180.

O mesmo autor também esclarece que a “Clínica de Bebês” nos ajudou profundamente a perceber os malefícios da fragmentação em diferentes especialistas, ocasionando a “retirada” dos pais do manejo e da percepção de si como detentores de saberes para cuidar de seu próprio filho, e tendo reflexos negativos importantes no psiquismo do bebê. Ele nos diz:

A ausência de um Outro confiável que encarnasse o código da língua de um modo decifrável, em um momento em que ainda não se tenha constituído para a criança a diferenciação da letra, para orientar-se na selva significante, e sua substituição por inúmeros e estranhos personagens que lhe falam em nome de um saber que nada tem a ver com seu desejo, lançavam esses pequenos a uma clausura em seu narcisismo primário, ou a uma bricolagem precocemente esquizofrênica, quando não a uma depressão que os passivizava transformando-os em “bons pacientes”. Pág. 186

As premissas da Clínica TransDisciplinar vem sendo exploradas pontualmente, ainda de forma isolada. Além de Jerusalinsky, alguns outros autores brasileiros abordam o tema no viés do pensamento de Deleuze e Guattari, desde a década de 1990, nos trazendo contribuições muito relevantes. Brazão & Rauter (2014) são dois deles, que nos afirmam:

Tomar o ser humano como processo singular em formação leva a buscar métodos processuais e particulares de teorizá-lo. Implica em confiar em uma visão transdisciplinar tecida no encontro entre teorias diversas e mesmo entre disciplinas aparentemente díspares que, contudo, estabelecem zonas de ressonância entre si, sendo que na clínica encontramos o domínio privilegiado para a observação da fenomenologia humana em suas mais ricas expressões.

A clínica transdisciplinar pode ser concebida como um sistema aberto cuja prática é referida a um campo de dispersão do saber por oposição a um saber que se pretenda universal e ordenado (Rauter, 2012 pp. 13-21).

Nessa perspectiva, a utilização de teorias e saberes se produz por meio de “empréstimos”, de recortes, e no manuseio de fragmentos como numa bricolagem, implicando em um posicionamento, diante saber, que se caracteriza por uma atitude menos técnica, no sentido de quem detém um conhecimento aplicável a determinadas situações previamente concebidas e mais pragmáticas, pelo improviso de ferramentas que se compõem na produção de efeitos subjetivos.

Sendo assim, urge a revisão do esfacelamento que realizamos com o Sujeito, ficando clara a necessidade do estabelecimento de uma relação significativa, onde se estabeleça um vínculo profundo com apenas um profissional que transite pelos vários campos de saber, o “Terapeuta Único” (TU), como agente/representante da equipe transdisciplinar, multiprofissional, que dará suporte teórico-técnico-afetivo nutrindo o TU para que possa acompanhar as demandas apresentadas pelo propósito, não importando se advindas de campos disciplinares distintos de sua formação original.

IV - O TU “não pode” (não deve) se sentir sozinho!

Para que haja a afinação suficiente em um grupamento de profissionais de diferentes áreas disciplinares para um exercício interdisciplinar já há necessidade de certo desprendimento e abertura ao novo.

Quando falamos de TransD, isso se eleva à enésima potência, já que ser porta-voz de uma disciplina para a qual não se é “autorizado” demanda um grau de confiança e troca, onde a revisão das relações de poder e a clareza da impossibilidade de seguir outro caminho condicionam a eficiência da iniciativa.

Colocar o sujeito no eixo de qualquer intervenção, condicionando as decisões e escolhas às suas necessidades e momento pessoal, transformam profundamente a lógica vigente nas instituições reabilitativas e curativas: Diagnóstico – Prescrição – Tratamento.

Pude viver a realidade hospitalar das enfermarias pediátricas de quatro hospitais de referência (IFF, HUPE, INCA e HEMORIO – RJ), durante 12 anos, e experimentar a radicalidade dos efeitos de um olhar transdisciplinar, mesmo que ainda restrito e pontual, priorizando a criança em suas demandas e linguagem em questões como o adiamento de uma conduta cirúrgica em virtude de um quadro depressivo, ou a delicadeza da demanda pelo brincar – intervenções da Profilaxia Psicomotora Hospitalar (Costa & Mello, 2000) – em quadros de inapetência e dificuldade de realização de um exame... ou o posicionar de um bebê em decúbito lateral com sucção não nutritiva, como sugere Heidelise Als (apud Costa, 1998), durante uma conduta dolorosa, de modo a não eliciar uma crise-tônico-emocional muito intensa, como descrita por Bergès (1985), promotora de possíveis dificuldades em seu desenvolvimento.

Todas essas atitudes nos revelam a priorização do Sujeito em detrimento da conduta ou da técnica clássica, adequando as intervenções às necessidades mais profundas daquele que recebe a ajuda.

Retomando o foco na abordagem do TU, e do Psicomotricista ocupando este papel, tomarei como base a Formação que idealizei e na qual sou formador há 15 anos – a Formação em TransPsicomotricidade Educacional e Clínica, em parceria com a Psicomotricista Martha Lovisaro, realizada, até o momento, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – RJ – Brasil.

Ao profissional que se aproxima de uma formação em Psicomotricidade especialmente nas linhas que se propõem “relacionais”, “livre-expressivas” ou que utilizam o “acompanhar” do movimento espontâneo do sujeito, uma enorme exigência é feita – submeter-se a um profundo trabalho de consciência.

O TransPsicomotricista, com o dever de trabalhar valores imprescindíveis à Reforma do Pensamento, se vê ainda mais implicado nesse mergulho, apostando em sua capacidade de ampliar seus limites intersubjetivos.

Este trabalho pessoal é condição para a adoção consciente de uma Atitude Transdisciplinar diante da equipe, família e da própria criança acompanhada. Construção realizada na caminhada conjunta, sempre retroalimentada a partir de cada escolha e decisão que condiciona a seguinte.

Portanto, para o TransPsicomotricista, não se trata de uma novidade o engajamento em uma relação sólida com o sujeito ou grupo acompanhado, sem nunca se esquecer de sua trama familiar e do conjunto institucional onde todos estão inseridos, como por exemplo, na escola ou sistema de saúde.

É importante precisar, como o fez Jerusalinsky (2010) que na relação com o TU “se trata fundamentalmente de situar a criança como sujeito no desejo do Outro para que ela mesma possa constituir o desejo que a conduza em seu desenvolvimento, inclusive através dos obstáculos que sua organicidade possa estabelecer-lhe.” Pág. 188.

V - TU e Família

A teia complexa da vida nos liga de forma sistêmica a tudo e a todos. Na concepção do Pensamento Complexo, sistemas simultaneamente abertos e fechados. A Família é um “corpo” que precisa ser lido e acolhido em suas necessidades, permitindo que cada sujeito possa rever seu papel e construir novas possibilidades.

Só é possível compreender em profundidade a cadeia de metáforas dos sintomas, quando conseguimos desvelar ao máximo a urdidura que sustenta a trama.

Como lembra Morin (2000): “somos possuídos pela cultura que possuímos” e as famílias nos chegam com demandas disciplinares, portam o “fragmento” adoecido e vem em busca de uma “reeducação” instrumental. Uma redução de “comportamentos inadequados”.

Muitas vezes isso se torna um obstáculo intransponível, pois ao se defrontar com uma proposta tão distinta, algo que já era assustador, mostra-se uma aventura que demanda ainda mais ousadia.

Isto ainda se vê reforçado pela postura disciplinar das instituições de ensino, assim como dos profissionais de saúde e educação em geral, que, tomados pelo habitus da pulverização de saberes, só conseguem ver na via da “hiperespecialização” disciplinar a eficácia que acreditam.

O processo de realização de um Perfil TransD é a oportunidade de demonstrar o que pode uma equipe a partir desse aporte.
A proposta que temos sustentado no Crescendo – Centro Integrado de Desenvolvimento Infantil, no Rio de Janeiro é:

  • Entrevistas com os pais ou responsáveis (diferente da anamnese, a entrevista é um encontro humano para o estabelecimento de uma relação de confiança);
  • Solicitação de fotos e pequenos vídeos caseiros da criança;
  • Solicitação de relatórios e contatos (telefônico e de mail) dos profissionais que atenderam/atendem a família;
  • Observação, com registro em vídeo, de uma interação livre dos pais com a criança, em sala preparada;
  • Observação, com registro em vídeo, de três sessões da criança em interação com um(a) do(a)s terapeutas da equipe TransD., no mesmo espaço;
  • É realizada a análise prévia de todo o material pela equipe multiprofissional transdisciplinar, culminando na reunião de fechamento de perfil, com esboço do laudo, proposta de formato das devoluções e indicações. Essa reunião pode ser duplicada mediante a complexidade do caso.

Na reunião de perfil, cada profissional se responsabiliza, inicialmente, por um recorte disciplinar, compartilhando percepções norteadas pela influência de seus saberes especializados, contudo, não há limitação para a dialógica e troca em equipe, que inclui, a partir das premissas da Antropoética (Morin, 2005), impressões, intuições e leituras subjetivas e culturais, entre, através e além das disciplinas.

Com isso todo(a)s se implicam também como seres humanos, a partir de suas experiências pessoais como pais, mães, tio(a)s, avós, filho(a)s, amigo(a)s, enfim, atributos que irmanam não só os componentes da equipe mas esta com as famílias que acolhemos. Isto não implica em mistura de papéis, que são distintos, mas facilita a comunicação e a realização em aliança.

Contudo, a tradução de todas estas impressões em um laudo coerente, com indicações e definição de condutas é sempre um trabalho muito delicado, para que o documento não gere mais “fechamentos” que “aberturas” da família em relação aos pedidos presentes em cada um dos sintomas e suas manifestações somatopsíquicas.

A sessão de devolução com os responsáveis é a chave para a abertura ou “fuga” diante do retrato que será apresentado, sempre incluindo a importância do contexto intersubjetivo familiar/ambiental além da “objetividade” dos sinais e sintomas manifestos no corpo da criança, da queixa trazida.

Caso os pais sintam-se amparados em sua ferida narcísica, acolhidos em seu sofrimento, há alguma chance de continuidade, com a implicação necessária para compreender que o processo de recuperação da criança passa pela participação efetiva dos familiares na reflexão e revisão de questões intersubjetivas constitutivas da rede pais – criança – sociedade.

Isso implica em que os pais concordem em comparecer, mensalmente ou quinzenalmente para sessões, para além dos encontros do terapeuta com a criança, onde apenas os responsáveis comparecem e se trabalha a compreensão e elaboração de estratégias para enfrentar as dificuldades apresentadas.

Semestralmente ou em tempo menor, dependendo das necessidades específicas do sujeito e família atendidos, se realizam as reuniões de avaliação do processo, com a presença da equipe completa, gerando sugestões e revisões de condutas do TU.

Contudo, mensalmente, cada Terapeuta Único em exercício tem supervisão individual com o responsável pela Supervisão TransD da equipe, que auxilia o TU a precisar e diferenciar suas demandas pessoais e as ações importantes para acompanhar o Sujeito alvo de seus cuidados, construindo com ele a necessidade de alguma interconsulta com áreas disciplinares específicas ou o trabalho pessoal em relação à alguma dificuldade contratransferencial.

VI - TU e Equipe TransD

Poucas são, até agora, as equipes que se intitulam “TransDisciplinares”, mesmo aquelas que tem desejo de se constituir de fato.
Para a formação de uma equipe TransD nos parece importante reunir profissionais que, para além de seus saberes disciplinares, acreditem na insuficiência da ciência clássica e da quantificação como vias exclusivas de compreensão e formulação de estratégias de ajuda aos sujeitos que trazem alguma marca em seu desenvolvimento.

Outro ponto fundamental é que cada membro da equipe TransD necessita de articulação e confiança no grupo multiprofissional, onde a atuação de um se sustente nas interconsultas e trocas intersubjetivas e técnicas com os demais, numa comunhão incomum à fragmentação disciplinar.

A humanidade presente em todos e a solidariedade pela certeza das cegueiras que inviabilizam o caminho solitário diante da complexidade dos fenômenos humanos, são eixos norteadores de uma prática contra hegemônica.

Contudo, os obstáculos disciplinares, muito enraizados em todos nós, criam dificuldades a serem trabalhadas para que realmente cada componente da equipe se sinta autorizado a falar “intuitivamente” sobre uma área de saber na qual não se formou ou mesmo de algo que não pertença a nenhum nicho disciplinar.

Para isto, torna-se imprescindível uma supervisão externa, que possa perceber os atravessamentos intersubjetivos que se processam nas relações do grupo, assim como as lacunas teóricas que geram insegurança quanto a esta nova abordagem.

Venho tendo a oportunidade de atuar como supervisor Transdisciplinar desde 1998, no Projeto de Profilaxia Psicomotora Hospitalar - Brincar é Viver, em suas atuações nas enfermarias Pediátricas, e mais recentemente, desde 2011 no Crescendo – Centro Integrado de Desenvolvimento Infantil, no Rio de Janeiro e desde maio de 2015 no Espaço Vida – Educação Inclusiva Especializada, em Goiânia.

É sempre uma experiência única, pois cada instituição e contexto devem produzir uma forma específica de conduzir o processo sempre inacabado de construção de uma lógica transdisciplinar, engajada na busca do Sujeito acima de suas patologias.

Isto demanda uma profunda revisão de valores que não pode se deixar capturar pelas questões cotidianas e reveses inevitáveis quando se está na contramão. Por isso, é condição que seja alguém de fora, que apesar de “trabalhar para a instituição” não está submetido a ela, podendo denunciar ruídos e auxiliar na fluência das comunicações.

Essa supervisão precisa abarcar um contínuo trabalho de integração e sensibilização da equipe, além das demandas individuais dos terapeutas envolvidos, oferecendo suporte para a autocrítica e as reflexões necessárias a uma ação coerente com os princípios transdisciplinares.

No caso do Crescendo e do Espaço Vida, os encontros presenciais e por Skype se realizam mensalmente, sendo os trabalhos vivenciais de integração e sensibilização, no caso da instituição de Goiânia, concentradas em dois encontros anuais.

Cada realidade, com suas demandas e possibilidades. Mais uma vez o TransPsicomotricista nesse papel pode utilizar as metas de sua própria atuação para dar suporte à equipe TransD, facilitando sua compreensão da tarefa e a descoberta de ações compatíveis com cada situação apresentada.

VII - TU e Escola

O foco da religação, do respeito pela tessitura que compõe cada sujeito e seu contexto, exige que no acolhimento à criança e mesmo ao adolescente, se forme uma ponte com a escola, ambiente fundamental na construção do universo relacional de cada sujeito.

Essa interface é imprescindível para compreendermos quais os fatores que integram o pedido de ajuda do sujeito complexo à nossa frente e também para que possamos “negociar” e oferecer apoio às adaptações pedagógicas possivelmente necessárias ao acompanhamento eficaz do Sujeito alvo de nossos cuidados.

Na estrutura escolar, a despeito de evoluções e revoluções que ocorreram na Educação nas últimas décadas, percebemos que o esfacelamento dos saberes e os vazios apontados por Morin nos Sete Saberes necessários à Educação do Futuro (2000), ainda se mostram inalterados, talvez até fortalecidos em alguns aspectos.

Decorre disto uma grande dificuldade em perceber a importância central do vínculo nas relações de aprendizado e, em especial, nas relações clínicas, levando a manutenção da lógica cartesiana, com a crença na condição da multiplicidade de especialistas para resolver as múltiplas dificuldades da criança.

A ambivalência da família fica sublinhada negativamente quando a escola não compreende a proposta Transdisciplinar, por isso, é muito importante manter a dialógica com a instituição, clarificando e dando suporte à possibilidade de aceitar o convite a esse outro olhar para o Sujeito e suas dificuldades.

Como todo ato político, que se volta para a sensibilização da necessidade de mudanças, é preciso ser estratégico e encontrar as brechas, mesmo nas realidades menos receptivas, evitando o fechamento e a rejeição que o “novo” pode provocar.

VIII - TU e Instituições Multi e InterDisciplinares

A perspectiva disciplinar, como já explicitamos, dificulta em muito a compreensão da proposta do TU. A multiplicidade envolvida em uma abordagem através de especialistas, vai se opor a toda epistemologia TransD em sua concepção de ciência e de subjetividade.

Portanto, não se trata de um diálogo fácil. Contudo, em benefício do sistema familiar que nos demanda compreensão, necessitamos abrir canais de comunicação, acompanhando e acolhendo as necessidades expressas e “acomodando” as arestas entre as exigências sociais e as possibilidades e desejos do sujeito e seu contexto.

Isto não implica concordar e compactuar com a fragmentação, aceitando mais de um clínico no atendimento direto da criança. Este princípio é fundante e cada família tem de realizar sua escolha, optando pela proposta unificada ou abraçando a multidisciplinaridade como a maneira que deseja ser ajudada.

IX - Concluindo sem concluir

A tarefa do TU NÃO é exclusiva do profissional que pertence à uma equipe TransD ou InterD que visa um exercício transdisciplinar. Um terapeuta que apenas exerça suas atividades no consultório pode construir uma rede TransD onde consiga se ancorar e oferecer eticamente um olhar transdisciplinar, a despeito de não ser membro integrante de uma instituição.

O vínculo é o eixo desta proposta.
É um vinculo intersubjetivo “suficientemente bom” onde tanto a criança quanto sua família possam encontrar uma referência para suas próprias reconstruções.

No caso do Psicomotricista, em especial do TransPsicomotricista que atua através do jogo livre, acompanhando a criança em seu brincar, a base de todo processo é conhecida - permitir à criança Ser em plenitude, diante do olhar e sendo acompanhado pelo adulto que legitima suas vitórias, dando suporte para o lidar com as fragilidades e desafios.

As raízes etimológicas do termo Brincar desvelam que deriva do latim “vinculo”. Ao Brincar, nos encontramos profundamente com o outro e podemos viver um companheirismo que não percebemos apenas na palavra ou em atividades mais dirigidas. O Brincar não se aprende nem se ensina... acontece na zona de desenvolvimento proximal, zona da intersubjetividade, onde a comunicação e a criação podem se dar.

É no Brincar que a criança percebe a possibilidade de comungar e vai absorvendo os princípios éticos – a casa comum. Na vinculação que se forma entre os “companheiros de jogo”, o respeito pela alteridade vai crescendo na medida da reparação da própria autoestima através da sensação de pertencimento e de estar no desejo do outro. A parceria vai estabelecendo, simultaneamente, uma ampliação do sentido de si mesmo e do outro, que acaba por reafirmar a identidade de ambos.

A Ética é a premissa base para ocupar um lugar de ajuda. A Antropoética, no caso da abordagem TransD com sustentação no Pensamento Complexo, nos mostra outra forma de abordar o sofrimento humano, sem fragmentar nem excluir, mas integrando e complexificando os fenômenos observados.

Incluindo o observador à sua observação, no respeito por uma lógica do terceiro incluído e sem abrir mão de produzir conhecimentos científicos, mas incluindo as qualidades às quantidades.

A TransDisciplinaridade, especialmente na Clínica, oferece acolhimento para a hipercomplexidade de cada Sujeito, em sua integralidade social e integralidade biológica, nas interfaces com os múltiplos fios de sua tessitura como indivíduo/sociedade/espécie.

Para além do “Profissional” que ocupa o lugar de TU em uma perspectiva Clínica TransD, o “Sujeito” que ousa fazê-lo está apostando em um mergulho profundo no encontro humano e sua potencia em fomentar em cada um as saídas saudáveis para os momentos mais adversos.

Referências Bibliográficas:

BERGÈS, Jean. Le trouble psychomoteurs chez l’enfant. Traité de psychiatrie de l’enfant et de adolescente vol II – Paris: Press Universitaires de France, 1985
BRAZÃO, José Carlos Chaves & RAUTER, Cristina Mair Barros. Sintonia Afetiva e Intersubjetividade na Obra de Daniel Stern - AYVU: REVISTA DE PSICOLOGIA - v. 1, n. 1, 2014
COSTA, Eduardo & LOVISARO, Martha (orgs.). TransPsicomotricidade – Psicomotricidade com Base no Pensamento Complexo e Transdisciplinar. Rio de Janeiro: WAK editora, 2013 & MELLO, Henriete Profilaxia Psicomotora Hospitalar: Projeto Brincar é Viver - Complexificando a hospitalização: Estabelecendo referenciais e instrumentalizando a ação na infância e adolescência In: FERREIRA, Carlos Alberto de Mattos, THOMPSON, Rita & MOUSINHO, Renata. (orgs.) Psicomotricidade Clínica. São Paulo: Lovise, 2002
Relações Psicomotoras do Bebê Hospitalizado – Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado do Instituto Fernandes Figueira – IFF/FIOCRUZ, M.S., 1998
JERUSALINSKY, Alfredo et cols. Quantos Terapeutas para cada Criança? IN: Psicanálise e Desenvolvimento Infantil – Artes e Ofícios, POA, 2010
MORIN, Edgar. O Método 6 – Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005
Os sete saberes necessários à educação do futuro – São Paulo: Cortez Editora, 2000.
Novas Fronteiras da Ciência. In: Ideias Contemporâneas - Entrevistas do Le Monde - São Paulo: Editora Ática, 1989.
O Método 3 – O Conhecimento do Conhecimento – Sintra: Europa-América, 1986.
NICOLESCU, Basarab. Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso IN SOMMERMAN, Américo; MELLO, Maria & BARROS, Vitória Educação e Transdisciplinaridade II, São Paulo, Triom/UNESCO, 2002.
PETRAGLIA, Izabel Cristina. Edgar Morin: A Educação e a Complexidade do Ser e do Saber. Petrópolis – RJ: Vozes, 1995

Trabalho apresentado no 1º. Congresso Internacional da Red Latino Americana de Universidades com Formação em Psicomotricidade: Perspectivas Acadêmicas e Profissionais da Psicomotricidade na Contemporaneidade - Fortaleza, Ceará – de 01 a 03 de outubro de 2015 e que foi publicado como o Capítulo 5 do livro: Corpo Transbordante – Relatos da prática transpsicomotora educacional e clínica – WAK editora, 2017

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