Percepções Da Clínica Transpsicomotora: O Círculo Da Agressividade

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE I CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOMOTRICIDADE XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOMOTRICIDADE

PERCEPÇÕES DA CLÍNICA TRANSPSICOMOTORA: O CÍRCULO DA AGRESSIVIDADE

AUTORA:


Fabiana Pimenta
TransPsicomotricista no Crescendo Centro Infantil (RJ),
Terapeuta Psicomotora (RJ),
Formada em TransPsicomotricidade Clínica e Educacional (IFHT/CEPUERJ - UERJ),
Mediadora Escolar (RJ) e Graduada em Pedagogia (Centro Universitário da Cidade)
fabianapsicomotricista@gmail.com

Resumo:

O presente trabalho aborda questões inerentes a terapia psicomotora na infância, na abordagem TransPsicomotora. Partindo de um caso clínico com uma criança de cinco anos, que traz como queixa principal comportamentos antissociais e de agressividade, assim como situações sociais que estão em torno dos sintomas.

Trataremos da agressividade como pulsão de vida do humano que, quando se apresenta de maneira exacerbada, se torna destrutiva e violenta. O estudo aponta diversos aspectos abrindo uma teia nas relações, com destaque para o sujeito inserido em seu amplo campo de convivências: a família, o meio social, a escola, a comunidade e a sua própria história de vida.

Palavras-chave: clínica psicomotora; agressividade; transpsicomotricidade; infância; violência.

Introdução


Partindo da experiência clínica, percebemos diversas manifestações corporais que nos falam, através da linguagem não verbal - forma com que a criança se expressa e comunica os seus desejos, simbolizados através do seu corpo.

Novas questões se desdobram no momento que nos permitimos olhar para o sujeito, além dos sintomas apresentados - maneira de expressão que por vezes mobiliza a família frente às dificuldades no trato com o infante. Assim, no decorrer do atendimento os mistérios emergem, a partir da trama da história familiar surge o “fio” muitas vezes puxado pela criança que ressalta as problemáticas vividas pelos pais.

Vecchiato (1989) reitera que o corpo, é local da projeção de todas as fantasias da criança, símbolo amplo de todas as suas angústias.
Desta maneira, os estudos em torno da terapia psicomotora revelam que o corpo tem memória que se inscreve de acordo com as vivências do sujeito. Desobeau (1988) salienta que certas partes do corpo desempenham o papel de “lembretes”, sendo assim uma marca, um sinal colocado num lugar à vista, encarregado de nos fazer lembrar aquilo que não podemos esquecer.

Esses são “lidos” pelo psicomotricista, através de manifestações nos jogos, na relação dual e na expressão do sujeito. Cabral (2001) ressalta que os “lembretes corporais”, os que surgem de maneira não simbolizada, podem ser recordados, sendo atualizados na terapia psicomotora, através das vivências corporais no enquadre terapêutico.

Quando o sujeito vivencia o lembrete corporal na prática psicomotora, possibilita reviver simbolicamente a memória advinda do corpo, podendo elaborar tais vivências na medida que vão sendo trabalhadas e enfrentadas pelo o cliente.

A temática da agressividade, no presente trabalho, parte das experiências vividas em um primeiro atendimento para a finalização da formação em TransPsicomotricidade Clínica. As questões experienciadas nesta atuação clínica, levaram-me a refletir sobre as contribuições da prática com viés corporal nos atendimentos com crianças e das influências vividas pelo sujeito em seu meio cultural, social e familiar quando estas se apresentam de maneira desfavorável, podendo assim, ocasionar atravessamentos que influenciam negativamente em seu desenvolvimento global e pleno.

A TransPsicomotricidade surge a partir das pesquisas realizadas pela Profª L.D. Martha Lovisaro e o Prof. Dr. Eduardo Costa em 2000, que buscavam ampliar a reflexão sobre a prática psicomotora e um conhecimento alargado sobre a ação humana que evolui para além do sujeito. Atualmente a formação é gerida por Eduardo Costa em parceria com Fabienne Bruce, que contribui com os novos passos da TransPsicomotricidade.

Costa, Costa & Bruce (2016), salientam que a abordagem se pauta nas linhas livre-expressivas em Psicomotricidade, no Pensamento Complexo, que se volta para a reforma do pensamento, complexificando a compreensão e a prática, assim como a Transdisciplinaridade.

As contribuições da prática TransPsicomotora Clínica, a qual iremos tratar no decorrer deste texto, vem ampliar as possibilidades de compreensão sobre a história do sujeito por meio do seu "olhar poliocular", que busca compreender o indivíduo em sua diversidade e plenitude. Esta abordagem psicoterapêutica tem como objetivo auxiliar no resgate da identidade do indivíduo que se encontra com dificuldade em lidar com as situações do cotidiano e no suporte à família.

Costa & Lovisaro (2010) ressaltam a importância de aceitarmos a complexidade do sujeito e a necessidade da autocrítica constante, na lógica do terceiro termo incluso. Costa (2017) salienta que a rotulação de nossas características como traços de doenças, encarceram as possibilidades de sermos singulares além de limitar uma existência plena e rica.

O que se pensa sobre a agressividade? Este tema mobiliza diversas discussões entre pais, professores e também terapeutas, principalmente quando percebida na criança. Por isso procuraremos clarificar alguns pontos a respeito deste assunto. A agressividade se apresenta como um vasto campo de estudo e precisa ser olhada de maneira ampla, visto que se trata de uma das fontes de energia pulsional e inata do indivíduo.

É por conta desta pulsão que o sujeito procura o movimento corporal expansivo em direção à algo que deseja, frente às diversas situações da vida. Winnicott (1982) ressalta que há outras nuances deste impulso, como a reação à frustração ou comportamentos que aparecem sob forma de oposição.

Cabral (2001) contribui nos dizendo que a criança, com o seu descontrole pulsional, teria que lidar com um montante de tensão intrapsíquica e não teria os recursos necessário para, a partir da aceitação da frustração e da espera, poder ir alcançando a satisfação, sendo capaz de fazer as suas elaborações e estruturar o seu mundo interno. A agressividade é uma energia necessária para o sujeito, inclusive para a criança, é por conta dela que o infante tem desejo de brincar, correr, pular ir ao encontro do outro.

E quando a agressividade se mostra exacerbada? Quando esta pulsão se apresenta destrutiva, colérica e excessiva, podemos dizer que se torna violenta e impossibilita o ouvir e a relação com o outro. Segundo Chauí (2013), a temática da violência é algo que causa e produz um acontecimento contrário à natureza das coisas. Assim, a ação humana viola as leis da sua própria natureza. Ela passa a não ser um viés de potência inerente ao sujeito, trazendo dificuldades para a fluidez das relações e da vida.

Winnicott (1987), salienta que a falta de integração da agressividade no sujeito, terá que ser escondida (timidez, autocontrole) ou cindida, podendo redundar em comportamento anti-social, violência ou compulsão à destruição. Sendo assim, podemos concluir que a agressividade é natural ao ser humano, é uma pulsão necessária no sentido de pertencer e estar vivo.

Esta se coloca como elemento central na capacidade de se relacionar com outro, de defender o seu espaço, de se posicionar frente a situações diversas, de brincar de maneira segura e de trabalhar. A agressividade quando exacerbada, se torna destrutiva, violenta, intolerante e antissocial, esta vai contra essa pulsão de vida inata ao sujeito. Se apresenta como objeto de atravessamento para uma interação com o outro e com o meio de maneira plena e saudável.

O encontro afetivo e o olhar atento para o infante se apresenta como um caminho relevante para a relação terapêutica, pois a partir da vinculação é possível estabelecer uma comunicação de confiança no espaço clínico. Conhecer a história do sujeito, a sua cultura, a trama familiar e sua comunidade é o primeiro passo.

Ir ao encontro do ela precisa, clarificando os atravessamentos que ela vivencia em seu meio. Morin (2000) destaca que o indivíduo não pode ser visto como absoluto pois ele está inserido na sociedade e na sua cultura. Perceber que o sujeito é cultural e que seu discurso corporal não está sozinho, vem carregado de transposições do seu meio, é compreender aspectos relevante do indivíduo e não reduzi-lo a um pequeno fragmento da sua história ou sintoma. Costa (2017) salienta que o sofrimento é a tônica e abrange não apenas o “sujeito” de nossos esforços, mas também sua família e a comunidade em que está inserida.

Objetivo:

O presente artigo tem como objetivo revelar as percepções obtidas na clínica psicomotora da infância, na abordagem TransPsicomotora, a partir do estudo de caso do atendimento de um menino de cinco anos que apresentava agressividade exacerbada, comportamentos antissociais e dificuldade na concentração.

Ressalta as contribuições da prática no viés corporal como possibilidade para leitura do jogo simbólico, ferramenta na relação cliente - terapeuta, manejo de atuação e forma de comunicação de maneira não-verbal expressa na linguagem corporal. Suas colaborações no acompanhamento da clínica infantil e sua família.

Material e método:

O método adotado nesta pesquisa é o estudo qualitativo, que, segundo Turato (2005), compreende os fenômenos, as manifestações, as ocorrências, as vivências, as ideias, e sentimentos que passam a ser compartilhados culturalmente e organizam o grupo social em torno das representações e simbolismos. O pesquisador está incluído como instrumento de pesquisa, usando no seu setting as experiências que se constituem na relação profissional - cliente - família - instituição, criando oportunidades de interpretar os significados expostos pelo sujeito a partir da trama familiar. Este método aborda as estruturas sociais, culturais, seus comportamentos, expressões e produções significativas.

Desobeau (1988) determina a especificidade desta psicoterapia, comparada a todas as existentes, ressaltando que nela o terapeuta está envolvido corporalmente. O paciente nos confronta através das suas expressões no agir, no silêncio e na palavra. A relação que se estabelece no diálogo corporal ao longo da terapia, assegura a continuidade das associações do vivido.

A criança em questão tem cinco anos, é do sexo masculino, que nomearemos de Ryan. Ele foi encaminhado para atendimento na clínica em âmbito de estágio da Formação em TransPsicomotricidade. A sala psicomotora utilizada para os atendimentos situada em uma instituição religiosa, de uma comunidade pacificada até então, porém com aspectos de violência intensa, localizada na cidade do Rio de Janeiro.

Primeiramente, nas entrevistas houve a identificação da criança, explicitado o objetivo do trabalho e a importância da avaliação. Com a concordância da responsável foram combinados os encontros para a construção do perfil psicomotor e frente aos resultados posteriores constatamos a necessidade do acolhimento terapêutico sendo definida a quantidade de sessões semanais necessárias.

Os atendimentos aconteceram no decorrer de um ano e meio, com frequência de um encontro semanal, com duração da sessão de 50 minutos e encontro mensal com a família. Os instrumentos utilizados foram a terapia psicomotora na abordagem TransPsicomotora, com a utilização da avaliação psicomotora em situação livre realizada em sete encontros, sendo: duas entrevistas com a mãe sem a criança, seguido de quatro encontros com o menor e um encontro de devolutiva para a responsável.

Para a coleta de dados foram realizadas filmagens das sessões, solicitadas fotografias das várias fases evolutivas do menor e relatório escolar. Enquanto transcorreu o perfil foi realizada visita à escola afim de recolher mais informações vindas de olhares distintos.

Desobeau (1974) ressalta a importância da avaliação psicomotora em situação livre para que seja observada a maneira em que o sujeito está inserido no mundo. O primeiro encontro com a família é o início da relação, serve para compor o retrato da criança em seu meio, tendo como propósito recolher o máximo de dados a respeito do sujeito e conhecer a história do infante.

Durante o encadeamento da construção do perfil e do atendimento, a supervisão periódica com Transpsicomotricista Clínico experiente é premissa para que o processo aconteça, neste caso sendo um atendimento para a finalização da formação clínica, o acompanhamento foi feito pelo formador em transpsicomotricidade Dr. Eduardo Costa.

A supervisão é o momento de expor as dificuldades frente ao atendimento, ao cliente e o seu contexto. Reavaliar os manejos diante das necessidades que emergem, ampliar as percepções sobre situações não vistas no setting e criar estratégias para a atuação são algumas de suas metas.

A supervisão mostra-se como ponto relevante para o caminhar do atendimento, principalmente sendo executado por um psicomotricista iniciante. Situações aparecem no atendimento como transferências vindas da criança e da família, é essencial que o terapeuta esteja com suporte adequado para lidar com as situações inusitadas ou inerentes ao acompanhar clínico, para não entrar na contratransferência e caminhar com o processo adequadamente.

Palhares (2008) salienta que a transferência em si nos fala de algo vivo. Isso porque ela emerge do contato emocional do paciente com o terapeuta. A contratransferência é o acontecimento que induz o terapeuta a produzir uma resposta emocional.

A formação pessoal apresenta-se como imprescindível para a atuação, pois neste período surgem os medos, as inseguranças e as dúvidas que podem atrapalhar a condução do trabalho junto à criança, a família e a escola. Costa & Lovisaro (2010), ressaltam a importância da formação pessoal no processo de formação, pois é no viver do seu corpo, reconhecendo a sua imagem, e refletindo sobre os seus fantasmas corporais tomando consciência de si.

A perspectiva do terapeuta único exprime o diferencial da prática TransPsicomotora Clínica, que ressalta a relação e o vínculo profundo com apenas um profissional durante o tratamento. Costa (2017) salienta que o “Terapeuta Único” (TU) é o representante da equipe transdisciplinar que dará suporte teórico-técnico-afetivo para que possa acompanhar as demandas da criança.

Discussões e Resultados:

Ryan frequenta a Educação Infantil em uma escola pública localizada na comunidade em que reside. No discurso da mãe, Ryan é nervoso, chora por qualquer motivo, quando contrariado é agressivo, tanto em casa quanto na escola, e apresenta dificuldade nas atividades pedagógicas.

A genitora relata que a gravidez foi complicada, sofria agressão física do companheiro e abusos emocionais.
Ressalta que a separação do casal foi conturbada, o pai deixou o lar após uma briga, quando o menor estava com três meses, deixando a mãe com os cuidados do filho e sem assistência. Relata não ter contato com o ex-cônjuge e evita falar do pai para a criança. Salienta fazer uso de força física para dar limites ao menor, assim como era tratada pelo pai, na infância.

Na visita à escola, a educadora demonstra preocupação com os comportamentos violentos do menor. Pontua que ao ser contrariado, Ryan chuta, bate, grita e xinga as crianças e os adultos. Salienta que o infante traz falas sobre o desejo de encontrar o pai para brincar.

Percebe a carência vinda do menor e por isso procura acolher as suas demandas, porém destaca não saber como lidar com as manifestações coléricas contra as outras crianças, principalmente com meninas. A professora revela cautela com o aluno em relação aos encantamentos do universo do tráfico vivenciado pela população da comunidade diariamente, destaca que as crianças são figuras vulneráveis na realidade social do local.

Penha e Figueiredo (2009) salientam sobre a violência atribuída ao tráfico de drogas que tem como reflexo externo um ciclo vicioso, do qual o aluno e as famílias, na percepção dos professores, apresentam dificuldades em se libertar, por conviver diariamente as relações que se configuram em valores investidos, medo em seu ir e vir, além do cerceamento.

Na primeira sessão, organizamos o setting terapêutico com a sala ampla sem mobília organizada com a proposta da avaliação psicomotora em situação livre de Françoise Desobeau (1974) propõe a disponibilização dos objetos dinâmicos, afetivos, criativos e as representações dos elementos naturais, possibilitando a ação e criação da criança.

Ao chegar no espaço, foram apresentadas as regras de funcionamento: não se machucar, não machucar o outro e cuidar dos objetos e a sala. Neste primeiro encontro, Ryan não se interessava por um objeto, seu movimento era de correr e chutar os materiais. Acompanhava as suas ações sem interferir, porém, quando jogava os materiais em minha direção, relembrava o combinado de não machucar o outro. Seguia seus movimentos, empilhando os grandes blocos, direcionando a pulsão agressiva de Ryan para a pilha e procurava estabelecer vínculo com o infante.

Na segunda sessão, Ryan esquivava-se de proximidade, e quando ao iniciar contato com a mediação dos objetos, reagia com agressividade e resistência. Respeitava o espaço da criança e as suas manifestações corporais, deixando-a livre para explorar os objetos da sala. Conforme o seu desejo. Solicitado, ao final da sessão que fizesse alguns desenhos, o infante resistiu, foi ressaltado que fizesse da sua maneira.

Seus desenhos foram feitos com pressa, a figura humana não possuía boca. Chevalier (2015) relata que a boca é o símbolo da força criadora e, muito particularmente da insuflação da alma. Considerando que a figura humana não possuía boca, é relevante considerar a dificuldade em comunicar-se, em falar do que sente e de autorizar-se a mostrar as suas habilidades e potencialidades.

Cruzando as informações obtidas até o momento, é válido salientar sobre a percepção da criança sobre o não dito em seu ambiente familiar e da falta de acesso há partes da sua história.

No setting durante o brincar livre e espontâneo, Ryan demonstrou comprometimentos significativos desde o período gestacional, intensificados na primeira infância. O ambiente e as experiências vivenciadas se refletem em seus comportamentos antissociais, agressivos e as compulsões à destruição, além da carência intensa em relação à mãe. Dolto & Hamad (1998) afirmam que quanto mais a criança é tratada com violência pelos pais, mais essa violência se torna inconscientemente necessária à criança. Quanto mais a relação com os pais lhe proporciona excitação, mais ela se prende a eles.

Na sessão da devolução do perfil psicomotor foram explicitadas as seguintes questões percebidas no menor: demonstrava sentimento de rejeição, inferioridade, desorientação, autocrítica severa, insegurança, indecisão, agressividade mal elaborada, emocional frágil, dificuldade em se relacionar, falta de segurança em mostrar suas potencialidades, ambiente vivido que traduz altos níveis de exigências e expressa indícios de violência.

Foi acordado com a genitora que se extinguissem os castigos físicos, com a tarefa de procurar outras maneiras para dar limites a criança. Que deveria ser mantida a regularidade nos atendimentos com a criança e dos encontros mensais com a ela, focados na sensibilização desta mãe para ampliar suas percepções sobre o menor e suas necessidades e dos malefícios da utilização da força física como sinalizador relevante dos comportamentos da criança.

O trabalho terapêutico seguiu na direção a abrir espaços para que Ryan pudesse exortar os impulsos agressivos e destrutivos nos materiais, de forma simbólica. As utilizações dos objetos como mediadores da relação são utilizadas no trabalho transpsicomotor clínico, propiciando, no jogo simbólico, a expressão de nuances que não podem ser expostas com palavras.

Lapierre & Lapierre (2002) ressaltam que intercalado entre dois corpos, o objeto preenche o espaço que separa cliente-terapeuta. O psicoterapeuta se utiliza das possibilidades simbólicas percebidas na comunicação não verbal da criança, fazendo uso do material nas liberações das tensões, pulsões e desejos do sujeito. Desta maneira é possível não reprimir o movimento agressivo e sim canalizá-lo adequadamente naquele momento.

Descortinar segredos que pairam sobre a relação mãe e filho, como o fato de Ryan não conhecer o pai e da explicação sobre a sua ausência gerar um “emaranhado” de sentimentos, repetições e dificuldades por parte de todo o contexto particular da família.

Desobeau (1988) pontua que há sinais inscritos no corpo, o que significa para o sujeito algo importante e difícil de esquecer. Podemos pensar que “o círculo da agressividade exacerbada” experienciada pela mãe nas suas relações parentais e afetivas, trouxe em seu trato com o filho a repetição do ato físico como maneira de limite. O comportamento adquirido pela criança se manifesta como conduta colérica frente à situações de frustração junto ao seu meio. Esta forma aprendida e marcada em seu corpo desde a gestação, se traduz como forma possível da expressão da sua insatisfação e mesmo de sua tentativa de comunicação.

Nos encontros mensais com a mãe, a busca era acolher seus anseios e as dificuldades no trato com a criança. Intensificava-se assim no processo terapêutico a sensibilização para que a genitora suprimisse a força física nas suas buscas de limitar o filho a fim de atenuar as defesas e reações mais violentas e facilitando a troca fluida e tranquila nas relações da criança.

O eixo do trabalho TransPsicomor é o vínculo que se estabelece tanto com a criança quanto com a família. É a partir deste enlace que se faz possível o andamento na terapêutica e a reorganização do agir entre a criança e da relação com seus genitores. Costa (2017) destaca que o vínculo intersubjetivo “suficientemente bom” colabora para que tanto a criança quanto a família possam encontrar uma referência para as suas próprias reconstruções.

Nos desdobramentos das sessões psicomotora, além dos materiais dinâmicos, disponibilizamos espaços para construções plásticas, com papéis de diversos tamanhos e materiais de pintura, já que para a TransPsicomotricidade todos somos arte e a expressão plástica pode ajudar na organização e elaboração dos conflitos apresentados. Ryan se apresentava tranquilo, aceitando pouco a pouco a aproximação e através do grafismo o menor mostrava a organização progressiva de sua expressão, trazendo para a terapia uma maneira de comunicação sem a agitação intensa.

A arte e a livre-expressão do brincar são instrumentos importantes para possibilitar à criança outras vias de elaboração, além de fortalecer a sua potência quando expõe as suas criações e ideias. Silva, Bruce e Costa (2017) revelam que a arte desperta a consciência, a capacidade expressiva e criativa, dando sentido aos pensamentos, às ações e às emoções.

Tudo isso envolve a relação entre o eu e o outro. Nas percepções clínicas TransPsicomotoras, a linguagem gráfica possibilita a expressão das fantasias, pensamentos e ideias criadas no imaginário da criança. A elaboração do vivido nas sessões psicomotoras e na vida do sujeito são traduzidas em imagens, cores e formas expostas e narradas pela criança a partir de suas construções plásticas ou gráficas.

Percebemos que diferente do momento do perfil, Ryan foi podendo construir uma figura humana mais completa, inclusive com boca. Percebe-se a possibilidade de demonstrar a sua força e sua comunicação agora sem o uso da violência. Enquanto ilustrava, Ryan relatava fatos e informações contados pela mãe a respeito do pai, narrativa, desenho e expressão corporal se misturaram e se apresentaram no setting como elaboração da sua história. Aucouturier (2007) revela que o desenho tem um valor projetivo que evidencia a história afetiva da criança.

Ao acessar a sua história, Ryan começou a se inteirar da sua realidade como personagem ativo na sua vida. Winnicott (1963) fala a respeito da realidade interna e externa necessária à criança, que enriquece como um intercâmbio contínuo.

Costa (2017) revela que vivemos em uma teia complexa, que nos liga de forma sistemática a tudo e a todos. A família precisa ser lida e acolhida em suas necessidades, permitindo que cada sujeito possa rever o seu papel e construir novas possibilidades na sua história. O olhar amplo para a relação com a família no processo clínico é primordial.

Os resultados gradativamente foram sendo percebidos, os desdobramentos da diminuição dos limites corporais vividos por Ryan começaram a ser notados em seu comportamento no setting transpsicomotor. A chegada à sala de terapia psicomotora era pacífica e amena, usufruindo o tempo da sessão com momentos de ação, movimentos corporais, instantes de concentração e segurança para fazer as construções nos jogos simbólicos.

Em texto de 2017 já tive a oportunidade de pontuar que quando há uma organização interna, a criança consegue aproveitar melhor os espaços disponibilizados, ampliando com segurança e tranquilidade o seu agir.

A tranquilidade de Ryan foi percebida na creche e nos locais onde a família frequentava. A mãe relatava um comportamento tranquilo do filho em algumas relações, tendo interesse por atividades que envolvessem concentração. Abrindo possibilidades de conversa com os filhos a genitora foi estabelecendo proximidade e vínculo mais sólido com Ryan.

Percebemos que a sensibilização da mãe e conscientização quanto a utilização da conversa e de outras maneiras que não fossem o castigo físico para educar seu filho foi produtiva sendo possíveis novas construções no trato e no lidar entre eles.

Essa troca com a família é sempre fundamental no processo terapêutico para que se possa cultivar um novo lugar para a criança no imaginário dos pais e abrir espaço em suas expectativas e desejos para o devir, sempre imprevisível do sujeito-criança em sua singularidade. Winnicott (1963) ressalta que a maturidade do ser humano implica não somente no crescimento pessoal, mas também na socialização.

Costa & Lovisaro (2010) ressaltam o que é essencial na prática TransPsicomotora, o reconhecimento do sujeito em sua potência e a capacidade de desejar se comunicar de forma verbal ou não verbal.

É a partir das leituras da expressão do sujeito que o profissional lança mão do manejo adequado. É através do vínculo e da relação corporal que a comunicação se estreita e que os enquadres terapêuticos são construídas em direção ao que o sujeito necessita para expandir-se em sua plenitude sem atravessamentos e dificuldades.
Considerações finais:

A análise deste caso clínico permite salientar que as manifestações de agressividade exacerbada não devem ser vistas de maneira fragmentada, apenas relacionadas a uma única causa ou prioritariamente como sendo apenas responsabilidade do sujeito. Estão associadas à uma trama complexa de aspectos que envolvem o social, a família e suas histórias transgeracionais, a cultura, o ambiente vivido, os tratos com o sujeito e a violência a qual esteja sendo acometido.

O círculo de violência acabou envolvendo Ryan em uma repetição difícil de sair, onde o caminho era se proteger da maneira que conseguisse, sendo ele uma criança. Fazendo uso da expressão agressiva exacerbada, da oposição e resistência nas relações sociais ele manifestava as dificuldades de cuidado e de estabelecer vínculos vinda da mãe. A criança percebe o não dito e expõe seus sentimentos de falta de lugar, de não ser aceito e de falta de amor no âmbito familiar e consequentemente nas suas relações com o outro, expressando comportamentos caóticos como maneira de externalizar a sua dor.

A partir da proposta TransPsicomotora clínica Ryan apresentou evoluções significativas. Tais progressos podem ser evidenciados tanto por meio de observações clínicas como pelos apontamentos vindo da família e da escola. A professora trouxe sinalizações de comportamentos mais tranquilos com o grupo, e que a atenção e produção da criança têm sido realizados sem resistência.

Morin (2000) ressalta que a complexidade humana não pode ser compreendida tão pouco dissociada dos elementos que a constituem. É impossível observar Ryan sem considerar a família, a escola, a cultura, a comunidade o seu meio social como um todo. O olhar poliocular sobre a história do sujeito é o que possibilita o acompanhar pleno das necessidades do indivíduo.

Acreditar nas potências da criança é permitir que ela possa encontrar espaços possíveis para se desenvolver e ultrapassar as dificuldades é fundamental para dar a ela o protagonismo e segui-la na expressão de suas necessidades. A história do sujeito é uma parte importante de sua identidade, que às vezes traz atravessamentos na sua maneira em lidar com as situações e com os outros, mas não o define. É preciso dar espaço para que o indivíduo possa realmente mostrar quem é.

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