Um Estudo da Imagem corporal sob a Ótica da Consciência e do Inconsciente – Autor: Carlos Alberto de Mattos Ferreira

AUTOR:

Carlos Alberto de Mattos Ferreira
Sócio Titular da ABP
Doutor em Saúde Coletiva (UERJ) e Mestre em Educação (UFRJ)
Psicólogo, Psicanalista, Psicomotricista e Fonoaudiólogo.
Coordenou o curso de graduação em Psicomotricidade (IBMR- RJ) e a pós-graduação em Psicomotricidade (IBMR-RJ - 1992/2017)
Autor de diversos livros e artigos
Contato: cmattos57@globo.com

UM ESTUDO DA IMAGEM CORPORAL SOB A ÓTICA DA CONSCIÊNCIA E DO INCONSCIENTE

“Se os bois, cavalos e leões tivessem mãos, os bois desenhariam deuses com a forma de bois; os cavalos deuses com a forma de cavalos, e os leões, deuses com a forma de leões. Todos fariam deuses com corpos semelhantes aos seus próprios corpos “ (Xenofanes de Colofon)

Carlos Alberto de Mattos Ferreira e Robinson Machado
O original deste artigo foi publicado no livro Imagem e Esquema Corporal ( FERREIRA, Carlos Alberto de Mattos & THOMPSON, Rita. São Paulo: Lovise Editora, 2002).
Este artigo foi escrito em co-autoria com o psicanalista e músico Robinson Machado: machado.robinson@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO:

O presente estudo visa a discutir os diferentes usos do conceito imagem corporal, no campo da consciência e do inconsciente. Para levarmos a termo situamos as pesquisas na obra de L.S.Vygotksy e Wallon para o estudo da consciência e de Freud e Lacan para o estudo do inconsciente. O conceito de imagem não ficará restrito ao próprio corpo, mas à condição de subjetividade criada a partir de diversas influências, incluindo o corpo próprio, sua noção esquemática e sua relação com o conhecimento.
O pensamento Moderno inaugurado por Descartes traz como contribuição principal a relação do homem com a sua subjetividade e o conhecimento
Em nosso caso específico, demarcamos uma leitura da subjetividade a partir de Emanuel Kant, quando, rompendo com Descartes, anuncia a assunção de um sujeito responsável pelo conhecer desvinculado da transcendentalidade divina cartesiana.
Kant introduz dois elementos básicos e indispensáveis para a construção do conhecimento: os adquiridos a posteriori e os a priori.
Os conhecimentos adquiridos a posteriori são aqueles construídos com a própria experiência, sob uma base empírica e necessitam do tempo para serem internalizados: “Nenhum conhecimento em nós precede a experiência, e todo ele começa com ela.” (KANT, 1781/1987:25). Por outro lado, nem todo o conhecimento se origina da experiência, mas sim, também, de estruturas a priori presentes em nossas próprias faculdades de conhecimento que estruturam o objeto a ser conhecido.
Assim, Kant instaura uma forma de construção do conhecimento, da realidade e do eu, a partir de uma síntese entre as informações adquiridas pelas sensações e aquelas produzidas pelo pensamento:

“A nossa natureza é tal que a intuição não pode ser senão sensível, isto é, contém somente o modo como somos afetados por objetos. Contrariamente a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível é o entendimento. Nenhuma dessas propriedades deve ser preferida à outra. Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas. Portanto, tanto é necessário tornar os conceitos sensíveis (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) quanto tornar as suas intuições compreensíveis (isto é, pô-las sob conceitos). Estas duas faculdades ou capacidades também não podem trocar as suas funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada pensar. O conhecimento só pode surgir da sua reunião” (Kant, 1781/1987:55/56).

Esse deslocamento de Deus para o homem revela as bases com que o pensamento moderno veio a pensar a realidade e o homem, em si mesmo, como elemento desta realidade. A ciência passa a ganhar um estatuto de verdade, inaugurando o pensamento moderno. Para nosso estudo é importante compreender que Kant viria, ainda, a distinguir duas formas distintas de ciências: a da sensibilidade em geral, denominada de Estética e a do entendimento, em geral, denominada de Lógica. Além disso, instaura uma perspectiva importante para os estudiosos da consciência e do inconsciente (psicanalítico), ao admitir a dimensão espaço-temporal do conhecimento sobre os objetos em oposição ao conhecimento da “coisa em si “. Assim analisa Coelho:

“A coisa-em-si não pode ser conhecida objetivamente por mim. É algo incognoscível, porque não é espacial nem temporal e eu só posso conhecer coisas dentro do espaço e do tempo que me são familiares ou próprios. Entretanto, devido à minha sensibilidade natural, eu posso ter intuição da coisa-em-si ao lhe dar uma expressão formal, um “corpo” ou resultado” (1983: XXIV).

Esta forma que constitui a impressão de si mesmo e da realidade, a partir do Eu, tem sido, desde então, objeto de investigação das mais diversas disciplinas.
A construção da imagem e do esquema corporal tem sido discutida, sob os mais diversos ângulos, e em função de diferentes interesses. Neste trabalho, procuramos diferenciar sua gênese e importância na constituição das subjetividades.

IMAGEM E ESQUEMA CORPORAL NA CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA EM VYGOTSKY E WALLON

A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA EM VYGOTSKY

“...absolutamente tudo o que nos rodeia e foi criado pela mão humana, todo o mundo da cultura, tudo isto é produto da imaginação e da criação humana baseada na imaginação “ (Vygotsky, 1997:10).

Em Vygotsky, os termos imagem e esquema corporal não são facilmente encontrados, tais como os entendemos na perspectiva psicomotora. Deduzimos, em nosso estudo de sua obra, que o conceito de imagem se aplica aos princípios da imaginação e do papel que desempenha na construção do conhecimento e formação da consciência. Esquema corporal é o resultado da construção das Funções Psíquicas Superiores e diz respeito à atenção e ao movimento voluntários, à memória semântica, à percepção significante, à fala e ao pensamento verbal-lógico. Entretanto, não há como pensar o funcionamento do esquema corporal sem a contribuição da função imaginária.
Relacionando a teoria Kantiana com os estudos de Vygotsky, podemos estabelecer uma analogia entre o conceito de consciência, assentado sob as bases do pensamento verbal-lógico e o da construção do conhecimento, em Kant. Ambos sustentam o papel da significação para a construção da forma, da representação, do conhecimento e da consciência.
A função de significação é básica para reunir as impressões vividas com a ação e a emoção e fornecer-lhes um estatuto de linguagem, construída socialmente em cada experiência subjetiva e construída na mente humana sob a forma de representação da realidade interna e externa, ao que podemos chamar de consciência.
Sobre a função geral da imaginação, Vygotsky faz algumas distinções fundamentais. A primeira diz respeito a dois tipos fundamentais de imaginação: a exterior e a interior. A primeira é plástica e objetiva, pois emprega preferencialmente impressões vindas do mundo exterior e a segunda, emocional e subjetiva, utilizando-se de elementos vindos do interior.
As quatro leis que regem a função imaginária na consciência e, em conseqüência, sua determinação na formação da imagem de si e do mundo são assim descritas pelo autor:

1) A imaginação é uma função articulada com elementos da realidade e da experiência humana. A capacidade da mente em criar e fantasiar está intimamente vinculada à história de vida da cada indivíduo. Diz-se, geralmente, que a capacidade imaginadora da criança é infinitamente superior à do adulto, no entanto, uma criança não é capaz de estabelecer produções complexas tais como as da ciência e da arte, por exemplo. (Figuras 1 e 2)

Figura 1 : Desenho infantil de um coração

Figura 2: Série “ Corações “ do artista plástico Hildebrando de Castro

O conhecimento produzido pela ciência e arte, seus maiores descobrimentos e inventos são, quase todos, caracterizados por uma base de experiências previamente acumuladas. E , segundo Vygotsky, toda a imaginação e fantasia têm sua origem nestas experiências.
Pode-se dizer que tanto as experiências vividas socialmente, quanto às vividas internamente são traduzidas em imaginação e ganham estatuto de representação na mente humana, a partir da sua significação. Uma experiência compartilhada socialmente por dois sujeitos não precisa ter a mesma representação mental, na medida em que nenhuma história se confunde literalmente com outra. A significação do mundo é apreendida não somente pelas impressões advindas do objeto externo, mas também pelas condições internas do pensamento que apreende essas mesmas impressões.
Para explicar esse fenômeno interno de significação, Vygotsky explica que a significação, como construção social, tem uma função de generalização que é a mesma para todos, por exemplo, uma boneca é um brinquedo infantil, uma cadeira é um objeto da casa e um livro é um meio de transmissão de informação. No entanto, em cada experiência subjetiva, estes três elementos podem ter diversos sentidos. Uma boneca, uma cadeira e um livro têm representações subjetivas diferentes dependendo da história da cada sujeito.
Podemos citar, como exemplo, o caso da representação do conceito “livro”. Sujeitos educados em situação de privação da condição de leitores e considerados analfabetos têm uma representação mental e significados muito diferentes daqueles cuja paixão pela leitura encontra-se presente desde cedo. Da mesma forma, crianças com inibição e bloqueios da função da leitura e apresentando dificuldades na aprendizagem em conseqüência disto, têm, muitas vezes, aversão aos livros. O primeiro exemplo tem uma marca de representação por exclusão social e, tanto as crianças apaixonadas pela leitura, quanto as que têm aversão, expressam o caráter afetivo do qual as significações são constituídas.
Assim, o mecanismo de significação tem um sentido geral, que é o mesmo para todos e um sentido particular, constitutivo da leitura individual que um sujeito tem de si mesmo e do mundo ao seu redor.

2) A segunda lei descrita por Vygotsky articula a estreita ligação entre a imaginação e a fantasia com a realidade. Particularmente, o autor descreve a importância e a influência que a informação advinda dos quadros clássicos com suas respectivas estéticas exercem sobre a função mental do ser humano.
Segundo Vygotsky, a mente humana não pode conceber toda a gama de informações sobre a realidade partindo da própria experiência sensível, empírica. Somos informados por imagens visuais, multisensoriais e descritivas que se constituem da “condição absolutamente necessária para quase toda função cerebral do ser humano”(Vygotsky, 1997:20).
A compreensão de Vygotsky para este fenômeno é muito interessante e precursora de várias discussões contemporâneas sobre o papel da mídia na formação de valores e conceitos reunidos num conjunto de imagens que exercem uma ação identificatória e uma base para a própria condição do pensar-se a si mesmo e ao mundo à sua volta, tal como as debatidas dentro dos estudos sobre o imaginário social.
À época de Vygotsky, a função imaginária estava restrita basicamente à expressão plástica, tanto que ao referir-se a esta função na formação da mente, o autor exemplificava seus pressupostos a partir da influência dos quadros da Revolução Francesa e das imagens do deserto do Saara. Escrevia ele que, não precisava estar presente neste momento histórico ou ponto geográfico para que tivéssemos uma representação dos mesmos em nossa mente. A imagem produz uma representação mental com a qual trabalhamos como se fosse realidade.
No caso brasileiro podemos analisar o quadro “O Grito do Ipiranga” de Pedro Américo (1888) que criou no imaginário dos estudantes brasileiros uma representação do ato da Independência do Brasil (Fig 3). Como pensar no dito “Independência ou Morte!” tantas vezes repetido e visualizado em nossas cartilhas escolares. A cena de D. Pedro erguendo a espada é muito mais a construção do mito do que do fato. A fantasia cria a realidade mental que, por sua vez, estava baseada numa certa realidade histórica.
O historiador José Murilo de Carvalho (1999:12) relata que o pintor Pedro Américo “buscou construir a imagem de um herói guerreiro, criador de uma nação” atendendo, assim, à finalidade da encomenda.
Contudo algo mais interessante ainda se passa nesta produção.
Carvalho aponta a semelhança do quadro pintado por Pedro Américo com o tela de Ernest Meissoner “1807, Friedland”, pintado em 1875 e que se refere a uma batalha travada e vencida por Napoleão Bonaparte, em Friedland, no ano de 1807. (Fig 4).

Figura 3 : Quadro de Pedro Américo :

Fig 4 : Quadro de Ernest Meissoner

O historiador realça a semelhança muito grande entre os dois quadros e afirma “Nenhum dos dois pintores representou com exatidão os fatos, como, aliás, querendo ou não o artista, sempre acontece....Duas maneiras de contar a história, duas maneiras de construir a memória nacional” (1999: 13).
Assim, sucessivamente, assistimos à Guerra do Golfo contada pela mídia norte-americana, à banalização da violência nos noticiários da televisão, à imposição do mercado fonográfico bombardeando nossos olhos e ouvidos com modismos fugazes, à superexposição sexual voltada para fins comerciais.
E a imagem em função do lucro, construída como representação social e atividade mental.
Como podemos constatar, o imaginário social é constitutivo da atividade da mente, principalmente quando esta ganha o estatuto significante através da memória e do pensamento verbal-lógico.
Relacionando o vínculo de reciprocidade entre estas duas primeiras leis da imaginação, Vygotsky aponta para o fato da dependência dupla entre imaginação e experiência.
3) A terceira dimensão da função imaginária abordada por Vygotsky trata dos aspectos emocionais que envolvem esta construção. Sua perspectiva pode ser percebida em dois momentos distintos: tanto nas formas expressivas, quanto nas impressivas. Essa vinculação recíproca entre imaginação e emoção pode ser observada através dos sentimentos interferindo na imaginação e na ação da imaginação interferindo nos sentimentos.
O impacto emocional das imagens determina o caráter afetivo da representação mental. A arte da representação produzida no teatro, na tv e no cinema influencia o espectador, de tal forma, que podem provocar os mais diversos efeitos psíquicos e físicos. Diante das mais diversas cenas e enredos, um espectador pode experimentar sentimentos de dor, horror, pânico, medo, tristeza, alegria, asco, etc, dependendo da sua interação com aquilo que está sendo demonstrando em sua frente. Se na criança o limite entre fantasia e realidade pode ser um pouco mais flexível, no adulto fica bem determinado que aquilo que ele assiste trata-se de uma ficção, uma farsa, mesmo que o artista busque, em muitos casos, tornar o mais verossímil possível a sua produção.
Por outro lado, o estado emocional em que nos encontramos permite que, ao expressarmos nossos mais diversos produtos, transpareçam nosso estado de ânimo, angústias e esperanças, etc. Não se pode pensar em expressão sem emoção. O homem das artes e das ciências é movido pelo desejo de expressar-se.
4) A ultima lei que marca a importância da função imaginária diz respeito à criação propriamente dita, onde aquilo que a mente produz não se pode encontrar na existência da experiência da humanidade. Trata-se quase sempre de ruptura estética ou lógica que vem a redirecionar a forma com que o homem pensa a realidade ao seu redor. No campo das artes plásticas um exemplo clássico são as obras de Salvador Dali (Fig 5) que , atravessando a perspectiva da lógica realista, produz uma arte que instaura a linguagem onírica e surrealista, como objeto de uma nova estética, aparecendo também outros campos artísticos, tal qual a literatura de Gabriel Garcia Marques e J.J.Veiga e no cinema com Blade Runner (Fig.6).
Na história da humanidade, muitos exemplos de artistas e cientistas que previram inventos, descobrimentos e comportamentos estão presentes nos mais diversos campos das ciências e das artes. Quem seria capaz de afirmar que o homem chegaria até a lua e desenvolveria uma engenharia genética que viesse a construir clones dos próprios seres humanos?

Figura 5 : Quadro de Salvador Dali

Figura 6 : O mundo futurista de Blade Runner:

E o que podemos deduzir dessas quatro leis da imaginação para estabelecer uma conexão com a construção da imagem e do esquema corporal na obra de Vygotsky?
Como já pudemos observar, a função imaginária é determinante para a construção de toda a atividade mental e da representação da realidade interna e externa. A imagem corporal, como um produto imaginário tem também sua origem na interação entre a atividade sensório-motora do bebê e o campo da linguagem, que é eminentemente cultural. Sendo assim, a percepção de si e do seu corpo passa pela representação que cada sujeito vai fazer para si na sua relação com o outro, através dos signos e a partir da sua própria experiência.
O comportamento humano é regulado através da internalização da linguagem e, assim sucessivamente, transmitido de geração a geração.
Interferências de ordens afetivas e socioculturais vêm a interromper e/ou transformar esse possível determinismo, instaurando uma nova ordem imaginária, produzida, em geral, pela arte, pela ciência e pela religião, quando não advinda do próprio real da vida.
O próprio conceito de adolescência é um fenômeno dos tempos modernos e vem se estendendo, cronologicamente, durante os últimos anos. Antes da chamada modernidade, as crianças tornavam-se adultos, não passando por este ritual adolescente. A puberdade representava uma vida adulta, com a instauração do trabalho e, em muitos casos, no estabelecimento de novas uniões conjugais.
Especialmente, após a segunda guerra mundial e a eclosão da indústria cinematográfica com sua estética “rebelde sem causa” (Fig. 7) inaugura-se uma nova forma de construção de identidade jovem, de ideal moderno de juventude, que veio sendo transformado através das culturas pop dos anos 50, 60, 70: movimentos beat, hippie, punk, entre outros, a estética da calça jeans e a explosão do rock como meio de linguagem, marcam traços culturais identificatórios, com que o sujeito vai se defrontando em sua história e sendo, ou não, influenciado por eles.

Figura 7: Cartaz do filme “Juventude Transviada” (Rebel Without a Cause)

O homem chega à lua, inventa a pílula anticoncepcional e libera os parceiros para suas aventuras sexuais e/ou amorosas.
A ciência e a arte criam novos paradigmas que influenciam a forma como o homem e a mulher passam a ver o mundo e a se reconhecer neste contexto.
Nesse sentido, o homem é, também, um produto social da sua experiência sócio-cultural.
A imagem corporal e o esquema corporal não podem ser compreendidos isoladamente, sem estar relacionado com seu contexto social amplo (país, estado, etc) e restrito ( escola, família, etc).
Esse estudo faz com que consideremos uma condição importante para os estudos cognitivos e, em especial, neuropsicológicos, a saber: a imagem corporal não é uma construção restrita às influências obtidas pela informação visual. A imagem corporal, sob a ótica vygotskyana, é uma representação produzida sob um contexto sócio-histórico e como fruto da experiência individual. Imagem e esquema corporal são constituídos a partir da articulação entre significado e sentido. Contribuem para esta construção, as experiências vividas em toda a sua dimensão sensorial: imagens olfativas, cinestésicas, visuais, gustativas, táteis e auditivas. A conexão entre inteligência prática, sensório-motricidade e emoção, por um lado, e o campo dos signos e da linguagem, por outro é que permite a internalização dos conceitos de si, do outro e do mundo.
Nenhuma realidade para um sujeito, em sua substância mais profunda, é idêntica a qualquer outra.

A IMAGEM CORPORAL EM WALLON

A construção da imagem corporal, em Wallon, passa pelo estudo das premissas psicofisiológicas da consciência corporal.

“...a noção do eu corporal não se limita a sua intuição, embora plenamente coordenada, dos órgãos e de sua atividade: exige uma distinção feita entre os elementos relacionados ao mundo exterior e os atribuídos ao próprio corpo; assim pois, estaria o eu corporal definido sob os seus diferentes aspectos. Por conseguinte, é condição indispensável e de reconhecida suficiência, que seja possível a ligação entre a atividade debruçada para o mundo exterior e a relacionada de modo mais imediato, às necessidades e às atitudes do corpo” (1971:160).

Pode-se então afirmar que a consciência corporal passa pelo conjunto das informações obtidas através de três diferentes vias de informações que, por sua funcionalidade, são originalmente dissociadas: a primeira via distinguida por Wallon é a via das sensibilidades viscerais, internas e denominada de interoceptiva; a segunda via, chamada de proprioceptiva, refere-se às sensações ligadas ao equilíbrio, ações e movimentos do próprio corpo; e a terceira, considerada a mais tardia na perspectiva ontogenética, é a construída através da sensibilidade voltada para as informações/excitações de origem exterior e é chamada de exteroceptiva.
A dissociação das impressões na origem da consciência corporal pode ser considerada como fundante da experiência da constituição do eu.
Um dos focos do estudo de Wallon, importante para nosso estudo, está relacionado ao papel que a imagem de si mesmo, refletida no espelho, desempenha na integração e na formação do eu e da consciência corporal. Diríamos, mais ainda, que seu objetivo é o de saber como a criança se torna capacitada a reconhecer como sendo sua as informações extereoceptivas produzidas pelo espelho, sob um aspecto mais global e, eminentemente visual.
Pode parecer simples, mas perceber a imagem e relaciona-la a si próprio são construções complexas sustentadas numa ontogênese que passa necessariamente pelo outro.
Analisando o comportamento de alguns animais, Wallon sustenta que, em geral a função imaginária na natureza atua como um elo de ligação (pleonasmo), como uma reação à “modalidade da intuição sincrética que mistura o indivíduo ao seu ambiente , fazendo-o ressentir como uma amputação qualquer restrição deste ambiente”(1971: 189).
Patos, gatos e cachorros, por exemplo, não têm ilusão de realidade, nem de semelhança. As impressões proprioceptivas predominam sobre as visuais, sendo que estas últimas não tem função de representação.
Considerando os estudos de Kohler sobre os macacos, Wallon marca uma diferença na forma como estes reagem diante da imagem refletida no espelho. Para ambos, a reação dos chamados “macacos superiores” é de um nível superior se comparado à dos outros animais. Observa-se que estes passam a mão por detrás do espelho e enraivecem ao não encontrar nada, fato este que marca, de forma fugaz, “um desdobramento entre a percepção e a adesão, isto é, o nascimento da representação em face do real “(1971:191).
Estudando as reações da criança diante do espelho, Wallon destaca dois tempos importantes em sua psicogênese: a capacidade de perceber a imagem e de relaciona-la a si próprio.
O primeiro diz respeito à constatação de que, inicialmente, a criança aprende a relacionar imagem especular com a pessoa real, através da atitude de outra pessoa que, com ela, compartilha o reflexo no plano do espelho. Por exemplo, a descoberta de relação entre imagem e pessoa real, não se constitui através da imagem propriamente dita, mas do fato de estar a criança acompanhada de alguém que, falando ao seu lado, possa criar uma transferência entre pessoa real e imagem e, paradoxalmente, estabelecer, ao mesmo tempo, um vínculo entre imagem e pessoa real. Por isso, Wallon sustenta que a gênese da imagem passa pelo outro, reconhecendo no gesto provocado por uma excitação auditiva vinda da pessoa real a impressão que provoca a atribuição redutora da imagem ao objeto, traduzindo sua justaposição em identidade. O caminho percorrido para a associação vai do gesto à imagem.
Como podemos observar, a construção da imagem corporal passa por uma dinâmica complexa que envolve as mais diversas impressões e segue estágios necessários à sua significação. Observando as tentativas decorrentes, onde as crianças passam a tentar pegar a imagem do outro no espelho, Wallon afirma que :
“Embora capazes de perceber entre a imagem e o modelo uma relação de semelhança e de concomitância, não sabem ainda apreender as verdadeiras relações de subordinação. E por não saber reduzi-las uma a outra, reconduzindo-as a uma espécie de identidade virtual, continuam a atribuir aos dois como que uma realidade independente. Daí esta dupla conseqüência: ilusão de poder agarrar a própria imagem e surpresa pelo fato desta parecer superposta à pessoa “ ( Wallon, 1981:194)

O segundo tempo inaugura a construção da imagem de si, propriamente dita. A criança passa a reconhecer a sua própria imagem refletida no espelho buscando estabelecer um contato corporal com ela.
Neste momento de captura da imagem de seu próprio corpo, a criança passa a referir-se a ela (a imagem ), quando a chamam pelo seu próprio nome. Durante boa parte dos primeiros anos ainda assistimos às crianças chamarem-se na terceira pessoa, como um processo de referência a si mesmas, projetadas na imagem que construíram para si, especular e exteroceptiva.
O corpo proprioceptivo, ainda fragmentado em sua coordenação, que ainda mal sabe andar ou, em muitos casos, ficar de pé, inaugura a imagem de si através do espelho. Mais importante ainda, inaugura uma dissociação do eu, indispensável à construção psíquica: um eu das imagens e um eu proprioceptivo. Essa distinção é necessária para que possa haver representação de si. Sem exteriorizar-se não pode haver representação.

“O conhecimento adquirido pela criança de sua imagem ao espelho é, sem dúvida, um processo mais ou menos episódico entre os que lhe servem para faze-la entrar, gradualmente, tanto a si mesma quanto a seus elementos mais imediatos, no número das pessoas e das coisas cujos traços e identidade soube fixar progressivamente, de modo a finalmente apreender-se como um corpo entre outros corpos, como um ser entre outros seres “( Wallon, 1981:196)
A concepção simultânea de um mesmo indivíduo em dois lugares parece-nos como uma impossibilidade lógica e um desafio às leis da existência, no entanto, este é o primeiro passo para a construção do conhecimento sobre si próprio e o próprio corpo. Pertencer ao espaço, como um produto imaginário, fazendo parte da natureza das imagens, próximo do que diz o poeta Fernando Pessoa (1983:475):
“Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto a minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.”

A construção da imagem corporal é indispensável ao progresso ulterior da consciência. O dilema imposto pelas proposições: “imagens sensíveis, porém não reais e imagens reais, porém subtraídas ao conhecimento sensorial”(1981:199) implicam na apreensão da realidade como um produto absoluto da experiência sensível, estando subordinado à representação que, como diz Wallon é o primórdio de toda a função simbólica. Parece-nos uma nova possível leitura de Kant para a construção do conhecimento.
E tal qual Vygotsky, Wallon afirma que a imagem do corpo está articulada na rede de imagens de representações sociais fornecidas pelos adultos e pelas relações estabelecidas com o meio físico e social.
A imagem do corpo é um produto da linguagem, num espaço e tempo históricos.

IMAGEM E ESQUEMA NA ÓTICA DO INCONSCIENTE

Assim como Kant, Freud revoluciona a filosofia e também o conhecimento científico ao demonstrar que a mente humana não se restringe ao pensamento e às Funções Mentais Superiores. A consciência é uma das suas principais qualidades, porém uma qualidade inconstante. Outros processos mentais interferem e alteram a consciência; a subjetividade não é apenas o resultado de uma síntese do eu e a realidade. Há em sua estrutura algo desconhecido pelo sujeito, fora do alcance do seu conhecimento: o inconsciente.
A divisão do psíquico em o que é consciente e o que é inconsciente é a premissa fundamental da psicanálise e nos oferece outra visão da dinâmica dos processos mentais na construção do conhecimento, da realidade e do eu.
O destino da cada um não se limita somente ao resultado do meio social e cultural, em que vivemos, é também algo de sua própria estrutura corporal que humaniza um sujeito.
Para a psicanálise, o Eu é uma construção das características inatas e seu desenvolvimento, incluindo o corpo e sua construção corporal: “O eu é, antes de tudo, um eu corporal” (Freud, 1923/1976:40). O desenvolvimento está sempre em relação com as funções motoras verbais e perceptivas. O Eu se desenvolve a partir das sensações corporais. É no próprio corpo que nascem as primeiras sensações de prazer e desprazer e instauram no psiquismo o princípio do prazer, que é a tendência de buscar o prazer e evitar, o quanto possível, o desprazer. Este é o princípio dominante do aparelho psíquico e a dinâmica da sexualidade e das pulsões: excitações e estímulos sexuais.
Portanto, o corpo é a primeira fonte de prazer e a origem da sexualidade que, nesta etapa do seu desenvolvimento, é auto erótica.
O corpo é o objeto de desejo e de investimento pulsional, vivido como o primeiro objeto de prazer proporciona uma satisfação intensa, que vai resultar num sentimento de completude, o narcisismo.
Este conceito, emprestado da mitologia grega, só faz sentido na teoria por fazer referência a uma relação com a imagem corporal. Podemos interpretar este momento do desenvolvimento humano como um momento diferenciado, puro-corpo sem representações, sendo mapeado, desenhado por sensações e percepções, organizando uma unidade corporal e criando as primeiras representações mentais necessárias à constituição do esquema corporal.
Sabemos que o desenvolvimento psicomotor só existe a partir de sua representação no aparelho psíquico, portanto, a imagem corporal é o resultado das representações mentais do corpo.
Uma contribuição importante ao estudo da constituição da imagem corporal foi a de Lacan. Relendo o estágio do narcisismo em Freud e influenciado pelo conceito de imagem exteroceptiva em Wallon, ele concebeu o que chamou de O Estádio do espelho, que é o efeito de identificação produzido no sujeito quando ele se reconhece diante do espelho e seu corpo ganha o contorno de uma imagem. É um momento de jubilo narcísico provocado pela ilusão de completude que a imagem do espelho lhe devolve.
A assunção desta imagem corporal como imagem de si funda o eu que, pela ilusão de completude, o situa como eu ideal e matriz do registro imaginário. Este momento já antecipa uma relação com o outro, ainda que este outro seja ele mesmo. Esta relação com o outro não está ausente como sugere o termo narcisismo, porque a criança, na sua imaturidade motora e dependência do outro, é inserida numa relação dialética, da demanda de suas necessidades e o retorno vindo do outro, que atende, ou não, essas necessidades.
Esta seqüência temporal é sempre significada, cada sensação, cada emoção, adquire um significado próprio e ganha uma representação, um traço mnêmico e insere a criança no registro simbólico, o universo da linguagem. É através da linguagem que se constrói a relação com a realidade e o mundo exterior. A linguagem dá significado às percepções externas e internas oriundas do corpo, é quando o corpo começa a falar e exigir a satisfação de suas necessidades. A significação das necessidades transforma esta demanda em movimento desejante. O desejo marca a subjetividade e a construção da imagem corporal.
No universo simbólico, a palavra é o elemento fundamental de toda a organização psíquica: a atenção, o pensamento, a fala e o movimento. A linguagem cria o sujeito da consciência e do desejo.
Vygotsky pensou o sujeito da consciência e do comportamento voluntário, já Freud pensou o sujeito como o sujeito do inconsciente. Ambos concebem a palavra, o simbólico, como condição de existência da subjetividade e formação das funções psíquicas superiores.
A diferença apresentada em seus modelos teóricos não é conceitual e sim estrutural.
A concepção do inconsciente descentra o sujeito da consciência, onde o homem se reconhece como eu, centrado no sistema percepção-consciência e organizado pelo princípio da realidade.
O sujeito do inconsciente é regido por outra realidade: a realidade psíquica; onde o desejo, a fantasia e as identificações compõem outras imagens do eu, desconhecidas pela consciência, mas altamente determinantes à existência.
Como diz Lacan, em seu Seminário 2, “o inconsciente é este sujeito desconhecido do Eu, não reconhecido pelo Eu...o núcleo do nosso ser não coincide com o nosso Eu” (1954/1987, p.61/62).
O Eu é produto de várias identificações imaginárias.
A identificação é um processo no qual há uma assimilação do Eu a um modelo ou à imagem de um outro. Sua origem é o narcisismo infantil onde o ideal é a projeção imaginária de si mesmo.
A fascinação amorosa exercida pelos pais substitui esta primeira identificação por novas identificações, acrescentando novas imagens, novos modelos e ideais. Os efeitos das primeiras identificações serão duradouros e criam, no psiquismo um protótipo que se repetirá ao longo da vida, como um ideal do Eu, governando as ações e as escolhas individuais.
O ideal do Eu é também o representante de modelos culturais, pois o processo de identificação se estende do modelo familiar às regras sociais e ideais da cultura.
O comportamento humano é regulado pelas internalizações culturais que cada um repete e transmite sucessivamente como um ideal coletivo.
Este processo está na base da constituição de cada grupamento humano e é o responsável pelos fenômenos de massa, onde o indivíduo sucumbe impotente diante da força dos modelos impostos.
Esta submissão aos modelos culturais, no entanto, estabelece a identidade.
Parece difícil constatar, neste processo, uma participação consciente e voluntária na escolha desta identidade.
Até aqui estamos abordando as determinações inconscientes alheias à vontade, mas não podemos excluir a experiência e história pessoal de cada indivíduo e a significação própria que lhe será dada.
Os modelos ideais, representantes da cultura, somados aos modelos construídos individualmente podem formar um ideal de eu muito rígido e exigente que aprisiona o sujeito e restringe sua liberdade de desejar e escolher suas identidades próprias, provocando conflitos, inibições e perturbações mentais de diversas formas.
Os valores culturais são determinados historicamente e se transformam através do tempo.
Alguns sociólogos e historiadores definem a pós-modernidade como uma crise de valores referenciais e uma ausência de ideais tradicionais, tornando os indivíduos órfãos de ideais imaginários.
Interessante observar que, na ausência de ideais morais e de princípios éticos, o corpo ganhou a importância de uma identidade.
As pessoas valem o que aparentam e não o que são.
O culto à imagem do corpo parece substituir o vazio da existência contemporânea. Distúrbios como anorexia, a depressão e as fobias são indícios de que vivemos uma despersonalização em massa e nos sugere que, tanto a ausência, quanto o excesso de ideais são condicionantes que desviam e alienam nossa auto percepção e a imagem que supomos de nós mesmos.

CONCLUSÃO:

O estudo apresentado neste artigo buscou articular e explicitar alguns conceitos teóricos que são utilizados no campo da psicomotricidade, da psicanálise e das diferentes psicologias.
O foco da investigação dos conceitos imagem e esquema corporal têm suas interfaces com os mais diversos campos das ciências da saúde e sociais.
A construção da corporeidade e da imagem de si que comportam a formação das identidades, das subjetividades e das identificações são marcadas pela experiência intransferível do sujeito com o seu processo sócio-histórico e com o lugar em que ele vai se inscrever na cadeia significante, representante do desejo que é sempre o desejo do outro.
A diferença mais significativa que marca o campo dos estudiosos da constituição da subjetividade a partir da formação da mente e da consciência, dos que consideram a subjetividade como um fenômeno essencialmente inconsciente, pode ser descrita com a compreensão de que a segunda, além dos fenômenos experimentados a partir do arcabouço biológico e do contexto sócio-histórico privilegia a sexualidade e o desejo como elementos básicos da sustentação do lugar ocupado pelo sujeito na existência.
A importância deste pensamento para a psicomotricidade, em seus diversos campos de atuação, quer seja no trabalho com crianças ou em todas as fases da vida adulta, define um objeto e uma estratégia de intervenção bastante distinta das do campo da fisioterapia, da psicologia e da educação física. Em especial, porque busca articular um conhecimento transdisciplinar que se ocupa de revelar a nova face que a atuação clínica e educativa tangencia, especialmente ao compreender que certos sintomas são, acima de tudo, sociais. E outros, da ordem da subjetividade, ou seja, do campo do desejo .
Numa das suas áreas de intervenção, a dos distúrbios do desenvolvimento e da aprendizagem, a atuação psicomotora se justifica na medida em que, por um lado está instrumentalizada a avaliar as funções psíquicas que constituem a atividade da mente, e que podem ser consideradas como do campo do esquema corporal e, por outro lado, investiga as condições subjetivas implícitas no sintoma, que se expressam através da imagem corporal.
Sintomas no campo da fala, do movimento, da atenção, da percepção, da memória e do pensamento verbal-lógico podem ser avaliados em seus níveis de desenvolvimento. A aprendizagem decorrente dessas funções, tais como a escrita e a leitura, a hiperatividade e os distúrbios de atenção, as diversas alterações da ação voluntária (equilíbrio, coordenações diversas, ritmo, etc) e as desorganizações espaço-temporais, entre outras, podem ser analisadas com relativa objetividade e descritas nas impressões diagnósticas produzidas pela investigação psicomotora.
Contudo, para além das avaliações que integram o desenvolvimento motor e cognitivo, há que se investigar as condições subjetivas conscientes e inconscientes que são expressas pela imagem de si.
Como o sujeito se vê em sua história e diante de seu sintoma?
No caso da criança, como os pais, familiares e substitutos veem a criança?
Qual a influência da imagem de si na constituição do esquema corporal?
Qual o papel desempenhado pela afetividade na construção do conhecimento?
Qual o nível de interferência da cultura na sintomatologia psicomotora?
Quais os limites de reconhecimento do desejo e de integração social em sujeitos com diversas necessidades especiais?
Como podemos perceber muitas questões que relacionam o campo da imagem com o campo do esquema corporal estão cada vez mais presentes na clínica e na educação contemporânea.
Esperamos poder ter contribuído para o esclarecimento de que a construção da imagem não é um fenômeno que pode ser reduzido às diversas formas de impressão (expressão) visual, como, por exemplo, dos reflexos em espelhos ou em fotografias.
Imagem corporal é um conjunto de informações que constituem um sujeito diante de si, do outro e do mundo. A construção da imagem passa necessariamente pelo outro e pela cultura.
O sujeito aprende a se ver com os olhos dos outros. Mas, para além do olhar, há muito mais. Há a linguagem inscrita na forma desses que olham e que reconhecem o sujeito, lhe dão um rosto, um semblante, uma expressão.
Por certo, também temos as crianças que pouco (ou nunca) são olhadas, por motivos de hospitalizações, abandonos e rejeições.
Temos ainda as que sofrem de maus tratos e abusos, que também é uma forma perversa de ser olhada, reconhecida.
A imagem passa pelos cuidados recebidos, pelo amor e desamor, pelas frustrações, privações e castrações simbólicas.
De certo que a imagem corporal não é um produto só visual ou de contatos corporais.
Crianças que vivem com fome, na miséria e em condições socioeconomicamente desfavorecidas constroem sua imagem de humanidade nos valores sociais com que compartilham em seu meio a sua existência e seu lugar no mundo. Carregam, em sua grande maioria, esse lugar de reconhecimento e constituição da subjetividade.
Há significantes que já se encontram inscritos, mesmo antes do sujeito nascer e que o marca numa cadeia de significações, assim como o de etnia: branco, negro ou índio.
Outros nascem com marcas de alterações orgânicas que afetam seu desenvolvimento dentro dos padrões de normalidade da cultura: os surdos, os cegos, os portadores de paralisia cerebral, etc.
O sujeito está para além de seu corpo, apesar de muitas vezes estar marcado por ele.
A gerontologia nos tem mostrado o quanto a depreciação e o isolamento do idoso, em nossa sociedade, podem leva-lo à doença e à morte. E, por outro lado, a integração e o reconhecimento de seu lugar como sujeito, trazem-no à vida e a saúde.
Este vínculo entre sujeito, imagem, corpo, cultura e sintoma merecem ser cada vez mais aprofundado e discutido, sob suas diversas interfaces e pela via da transdisciplinaridade.
Buscamos, nesse artigo, apresentar alguns pontos importantes situados entre as teorias sócio-históricas, de um lado, e a psicanálise, de outro. Um estudo entre o comportamento e o desejo. Contextualizar o adaptável e o inadaptável do sujeito objetivando relativizar os estudos sobre imagem e esquema corporal
Uma tentativa de dialogar entre o campo da consciência e do inconsciente.
Na prática, um desafio diário da clínica psicomotora e psicanalítica.

Bibliografia:

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KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1987.
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PESSOA, Fernando. “Não Sei Quantas Almas Tenho’. Obra Poética de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1983.
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VYGOTSKY, L.S..La imaginacion y el arte en la infancia. México: Fontamara, 1997.
WALLON, H. As Origens do Caráter na Criança. São Paulo: Difusão Européia do Livro,1971.
Referências artísticas:

Figura 1: Um desenho infantil .
Figura 2: Quadro do artista plástico Hildebrando de Castro, sem título, 1995.
Figura 3: Quadro “O Grito do Ipiranga”, do pintor Pedro Américo, 1888.
Figura 4 : Quadro “1807,Friedland”, de Jean-Louis Meissonier, 1875.
Figura 5: Quadro de Salvador Dali, “El espectro Del sex-appeal”, 1934.
Figura 6 : Cartaz do filme Blade Runner.
Figura 7 : Cartaz do filme Juventude Transviada “Rebel Without a Cause”.

Texto que acompanha as figuras:

Fig 1 : O coração no desenho infantil revela a capacidade criativa marcada por um dos estágios do desenvolvimento gráfico, denominado de representação da figura humana.
Fig 2 : O coração no quadro do artista plástico Hildebrando de Castro expressa, por meio do pastel – a giz, a lápis e a óleo – uma técnica requintada que confunde o observador, com a ilusão de estar diante de uma pintura ou de uma fotografia.
As figuras 3, 4, 5, 6 e 7 dispensam texto de apoio.

O presente artigo revisado foi publicado no original em FERREIRA, Carlos Alberto de Mattos & THOMPSON, Rita. São Paulo: Lovise Editora, 2002.

2 Respostas

  1. Adorei !!! Facil de entendimento, organizado e esclarecedor . Parabéns ao autor !

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